Arte sobre ilustrações estilo xilogravuras de poemas de cordel
Quando participou do Festival de Artes de São Cristóvão, tradicional evento cultural realizado em Sergipe, o pesquisador Anderson Santos observou uma marcante presença da biologia nos cordeis. “Percebi que tinha muita biologia naqueles folhetos, mesmo vindos de pessoas que nunca foram à universidade”. Este foi o ponto de partida para um trabalho em que a poesia popular foi incorporada à educação de jovens e adultos nordestinos.
A estratégia foi parte do mestrado Compondo os versos de uma ciência intercultural: Poesia popular nordestina e ensino de biologia, defendido na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da USP, com orientação do professor Marcelo Motokane.
Anderson Santos – Foto: Arquivo pessoal
A abordagem utilizada em aulas de biologia da Educação de Jovens e Adultos (EJA) em uma escola pública da cidade de Rio Largo, em Alagoas, mobilizou a cultura local para enfrentar alguns dos desafios do ensino de biologia, como um distanciamento do conhecimento científico da realidade cotidiana das várias regiões do Brasil.
Com base nos princípios educacionais de Paulo Freire, Santos mergulha na análise das referências à natureza presentes nas poesias do cearense Antônio Gonçalves da Silva, mais conhecido como Patativa do Assaré. A pesquisa se propõe a investigar de que maneira essa expressão literária pode se tornar um recurso no processo de ensino da matéria de biologia, especialmente ao capitalizar a riqueza cultural dos jovens e adultos.
Ao adotar a abordagem freiriana, a dissertação reconhece a importância de incorporar elementos da cultura local e da vivência dos estudantes no processo educacional.
Sob essa ótica, a obra de Patativa do Assaré torna-se um ponto de partida significativo para estabelecer conexões entre a natureza, a poesia e os conceitos biológicos, proporcionando uma abordagem mais contextualizada e inclusiva no ensino.
Para Santos, a poesia de cordel, neste contexto, acaba refletindo as realidades e os desafios enfrentados pelo povo nordestino, ao mesmo tempo em que valoriza e celebra suas identidades, resistências e potencialidades.
Com uma visão decolonialista, que questiona a cultura imposta pelo colonialismo europeu no País, o trabalho elaborado por Santos vê no histórico econômico, social e cultural do Brasil as raízes de uma educação potencialmente defasada, voltada aos interesses de uma elite sudestina. “Nós, nordestinos, crescemos aprendendo que o Nordeste é uma região pobre, seca, e que a gente é burro”, critica o pesquisador ao defender a ampliação de abordagens socioculturais no aprendizado das ciências.
Ainda sobre a escolha de seu tema de pesquisa, envolvendo a cultura nordestina no ensino de biologia, o pesquisador acrescenta que “os cordéis, enquanto expressão poética, se tornam espelhos das vivências, desafios e resistências do povo nordestino. Celebram sua identidade e ao mesmo tempo evidenciam as complexidades enfrentadas por ele”, fatos que não estão desconectados dos conhecimentos que possui, particularmente dos biomas que visita. Santos lembra que, além da riqueza de conhecimentos que o nordestino traz de suas andanças, a caatinga não é seu único bioma, tem Mata Atlântica e muita praia.
Uma das razões para a escolha do poeta para o trabalho foi o contato anterior de Santos com os textos de Patativa do Assaré, além da forte conexão das obras desse autor com as vivências do povo cearense e o seu conhecimento da biodiversidade. “Ele teve muito contato com o sertão nordestino, aprendeu muito, e ele aborda esse conhecimento popular na poesia”, explica o pesquisador.
Apesar de uma resistência inicial com o uso de poesias em aulas de ciências, por serem geralmente vinculadas à matéria de Língua Portuguesa, o pesquisador conseguiu efetivar a participação dos estudantes. “Muitos alunos acreditam que o professor é o que sabe de tudo, então desmistificar essa ideia na cabeça deles é um pouquinho complicado”, conta.
Como resultado, segundo Santos, foi observada uma maior valorização do estudo da Biologia, por parte dos estudantes, a partir da incorporação de abordagens e práticas diversas. Além de se sentirem valorizados, reconhecerem-se enquanto nordestinos, os alunos também aprendem a partir do conhecimento científico”, avalia o pesquisador.
Santos conclui que a resposta obtida com o envolvimento dos alunos e a representatividade nas aulas reforçam a importância do desenvolvimento de métodos alternativos para o ensino. “A gente precisa diversificar as práticas e colocar os alunos como protagonistas.”
Alunas de escola em Rio Largo, no Alagoas – Foto: cedida pelo pesquisador
Dividido em três partes, o trabalho, defendido em novembro de 2023 e orientado pelo professor Motokane, explora, em uma primeira seção, a realidade e vivência do próprio pesquisador durante sua formação escolar e a convivência com a família, sendo conduzido à percepção sobre o ensino da biologia e a docência.
Num segundo momento, o estudo analisa 30 poesias de Patativa do Assaré, categorizando e representando visualmente a abordagem da identidade regional e da biodiversidade nos textos do autor.
Por fim, Santos pôde avaliar em sala de aula a potencialidade do material selecionado, promovendo a leitura e discussão dos textos. Para tanto, o pesquisador desenvolveu e aplicou uma Sequência Didática Investigativa (SDI), adaptada para trabalhar os biomas brasileiros, baseada na Literatura de Cordel; sequência que foi validada cientificamente por especialistas do Grupo de Pesquisa em Linguagem e Ensino de Ciências (LINCE/USP).
Foto: cedida pelo pesquisador
A sequência didática foi então aplicada em várias etapas, começando por apresentar o cordel Festa da Natureza, de Patativa do Assaré, para discussão e análise das percepções dos alunos quanto aos elementos estruturais, culturais e os relativos ao bioma da caatinga presentes na obra. A partir dessas atividades, os estudantes desenvolveram suas próprias poesias descrevendo características de fauna e flora dos biomas. Assim, Santos pôde observar que a aplicação da cultura nordestina nas aulas do EJA não só valoriza a afinidade regional, mas também “mostra que a poesia que emerge do povo do Nordeste pode ser um caminho para diversificar as práticas de ensino.”
A festa da Natureza Patativa do Assaré
Chegando ο tempo do inverno, Tudo é amoroso e terno, Sentindo do Pai Eterno Sua bondade sem fim. Ο nosso sertão amado, Esturricado e pelado, Fica logo transformado Νo mais bonito jardim.
Neste quadro de beleza Α gente vê com certeza Que a musga da natureza Tem riqueza de incantá. Do campo até na floresta As ave se manifesta Compondo a sagrada orquestra Desta festa natura
Tudo é paz, tudo é carinho, Νa construção de seu ninho, Canta alegre os passarinho As mais sonora canção. Ε ο camponês prazentêro Vai prantá feijão ligêro, Pois e ο que vinga premêro Nas terra do meu sertão.
Depois que ο podê celeste Manda chuva no Nordeste, De verde a terra se veste Ε corre água em brobutão Α mata com ο seu verdume Ε as fulo com ο seu perfume, Se infeita de vaga-lume Nas noite de iscuridão
Nesta festa alegre e boa Canta o sapo na lagoa, Νo espaço o truvão reboa Mostrando o seu roço som. Vai tudo se convertendo, Constantemente chuvendo Ε o povo alegre dizendo: Deus é poderoso e bom!
Com a força da água nova Ο peixe e o sapo desova, Ε o cameleão renova Α verde e bonita cô; Α grama no campo cresce, Α pernuda aranha tece, Tudo com gosto obedece As orde do Criadô.
Os cordão de barbuleta Amarela, branca e preta Vão fazendo pirueta Com medo do bem-te-vi, Ε entre a mata verdejante, Com o seu pape istravagante Ο gavião assartante Vai atrás da juriti.
Nesta harmonia comum, Νo mais alegre zumzum, As lição de cada um, Τodos sabe de có, Vai a lesma repelente Vagarosa, paciente Preguiçosa, lentamente Levando o seu caracó.
Α famosa vaca muge Comendo o nova babuge Vale a pena o ruge-ruge Da sagrada criação. Neste bonito triato Τodo cheio de aparato, Cada bichinho do mato Faz a sua obrigação.
Α Divina Majestade, Com esta realidade, Νos mostra a prova e a verdade Do soberano pade. Nesta Bliba natura Que faz tudo admirá,
Quarque um pode estudá Sem conhece ο ABC.
O Nordeste é a região do Brasil que apresenta a maior taxa de analfabetismo entre as pessoas com 15 anos de idade ou mais: 11,7%, segundo o Censo Demográfico de 2022. Isso significa que mais de 5 milhões de nordestinos não sabem ler e escrever, o que limita suas oportunidades de trabalho, renda e cidadania, e o EJA surge no Brasil justamente como uma tentativa de garantir os direitos educativos daqueles que não tiveram acesso à educação básica ou que a interromperam antes de concluí-la.
Assine as notícias da Guatá e receba atualizações diárias.