“Grândola, vila morena / Terra da fraternidade / O povo é quem mais ordena / Dentro de ti, ó cidade”
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Na madrugada de 25 de abril de 1974, à 0h25, a Rádio Renascença, emissora católica portuguesa, transmitiu a canção Grândola, Vila Morena, do compositor José Afonso. A música era o sinal esperado para que jovens militares do Movimento das Forças Armadas (MFA) dessem início à Revolução dos Cravos, levante que derrubou uma das mais longas ditaduras do século 20.
Orquestrado por cerca de 200 capitães e majores, o levante, que completa 47 anos neste domingo (25), pretendia restabelecer a democracia em Portugal, paralisada desde 1933 pelo Estado Novo de António de Oliveira Salazar, que governou o país até 1968, quando passou o poder ao seu herdeiro político, Marcello Caetano.
Antes da revolução, partidos e movimentos políticos eram proibidos, e diversos líderes oposicionistas estavam presos ou exilados. Além disso, a imagem das forças de segurança do país já se encontrava bastante desgastada pela duração do regime salazarista e principalmente pela “guerra no ultramar”, que reprimia os movimentos de libertação das colônias que Portugal ainda mantinha na África.
A ideia de organizar o levante partiu dos oficiais Otelo Saraiva de Carvalho e Vasco Lourenço, quando o MFA ainda era um movimento recém criado. A história foi relatada por Lourenço em uma entrevista concedida à Agência EFE.
“Quando retornávamos de uma de nossas primeiras reuniões, tivemos um pneu furado e o trocamos. Eram duas da madrugada, mais ou menos, quando disse a Otelo que não íamos solucionar nada com requerimentos e papéis, que devíamos dar um golpe de Estado e convocar eleições. Ele me olhou e disse: ‘Mas você também pensa assim? Esse é meu sonho!’”, contou.
A criação do grupo, curiosamente, foi autorizada oficialmente pelo Estado português. O pretexto para a fundação: “recuperar o prestígio” do Exército.
Segundo Lourenço: “Não dissemos abertamente que íamos conspirar contra o governo e dar um golpe de Estado, embora no fundo o propósito era derrubar o fascismo e a ditadura”. Além de Lourenço e Otelo, outro militar que teve grande papel na organização da Revolução dos Cravos foi o tenente-coronel Vítor Alves.
O levante ocorreu de modo relâmpago. Após a canção de José Afonso entoar no rádio, o MFA ocupou locais estratégicos em todo o país em poucas horas. Ao nascer do dia, uma multidão de aproximadamente 1 milhão de pessoas já cercavam emissoras de rádio à espera de notícias.
A operação pegou Marcello Caetano totalmente de surpresa. Acuado, ele renunciou ao cargo por telefone e se exilou no Rio de Janeiro, onde viveu até sua morte, em outubro de 1980.
Ao saber que os militares pretendiam restabelecer a democracia e pôr fim à guerra colonial, os portugueses começaram a dar cravos aos soldados, que os colocavam na ponta dos seus fuzis, o que dá nome à revolução.
Por ter acontecido sem derramamento de sangue, o levante teve grande adesão popular.
O processo passou, no entanto, por momentos de tensão a partir de maio de 1975, no período conhecido como Verão Quente. A efervescência política, protagonizada em grande parte pelos setores de esquerda, levou a direita e a Igreja Católica a temer uma radicalização do processo político iniciado após a revolução.
Para impedir o fortalecimento das alas mais radicais de esquerda, as facções conservadoras organizaram uma série de ataques contra sedes de partidos políticos. Esses setores de direita também se opunham às expropriações e ocupações de terras promovidas no sul do país e se preocupavam em especial com o ponto 6 do programa adotado pelo MFA durante o período de transição.
A cláusula apontava para uma reorganização econômica e social de tipo socialista.
A promessa de democracia foi cumprida: em 25 de abril de 1975, aniversário de um ano da revolução, ocorreram as primeiras eleições diretas em 41 anos. Os socialistas venceram. Um ano depois, também no dia 25, entrou em vigor a nova Constituição do país.
A abertura democrática possibilitada pela Revolução dos Cravos foi significativa para a garantia de direitos civis e políticos. Mas não apenas isso: a Constituição do país assegurou direito à habitação, à previdência social, à saúde, à cultura, à educação, entre outros. Foi também o início de um largo processo de nacionalizações e do fim da guerra colonial.
Na sequência da revolução, foi instituído em Portugal um feriado nacional no dia 25 de abril, denominado “Dia da Liberdade”.
A partir da década de 1960, diversos movimentos por independência começaram a surgir nas colônias de Portugal na África. As organizações passaram a ser duramente reprimidas pelas Forças Armadas portuguesas, sobretudo em Angola, Guiné-Bissau e Moçambique.
Durante o período, quase metade do orçamento de Portugal passou a ser destinado ao setor militar e eram raras as famílias que não possuíam parentes enviados às guerras coloniais.
Segundo dados da Agência Lusa, as Forças Armadas contabilizavam 243.795 soldados em 1974. Cerca de 117 mil foram combatentes nos conflitos. O saldo final foi de 8.831 mortos e cerca de 100 mil portugueses feridos.
A duração da guerra ultramar, o número de feridos e o despendimento de gastos necessários foram fundamentais para gerar insatisfação nas camadas populares e nos setores das Forças Armadas que se opunham às ações militares.
Imediatamente após a Revolução dos Cravos, as nações que ainda eram colônias portuguesas passaram a conquistar sua independência: a de Guiné-Bissau foi reconhecida por Portugal poucos meses depois do levante, em setembro de 1974; a de Moçambique, em junho de 1975; Angola conquistou independência em novembro de 1975.
Após os 40 primeiros anos de democracia, o número de militares em Portugal diminuiu 85%. Desde 2019, eles são menos de 35 mil.
A Revolução dos Cravos também possibilitou, anos mais tarde, o ingresso de Portugal na União Europeia (UE), rompendo com o isolamento que caracterizou a ditadura salazarista. A entrada no bloco ajudaria a modernizar o país por meio de uma transferência no valor de 80 bilhões de euros entre 1986 e 2011. A quantia é o equivalente a 9 milhões de euros por dia.
As exigências econômicas e fiscais da UE também tiveram custo alto. O país passou por uma grave crise econômica a partir de 2009, acentuada com a adoção de medidas de austeridade em 2011.
De 2018 para cá, Portugal passou a dar os primeiros sinais de recuperação, apresentando crescimento no PIB e diminuição nas taxas de desemprego.
Em janeiro deste ano, a reeleição do presidente Marcelo Rebelo de Sousa, do Partido Social Democrata (PSD), embora fosse previsível, reflete mudanças significativas na correlação de forças em Portugal.
A pandemia contribuiu para uma abstenção de 60% na eleição e vem escancarando as diferenças de projeto entre a esquerda, que pede mais investimento público, e o atual governo, que segue a cartilha da austeridade.
O crescimento da extrema direita, que alcançou o terceiro lugar, e a não apresentação de um candidato próprio pelo Partido Socialista (PS) confirmaram o reposicionamento de peças importantes no tabuleiro político do país. Entenda as disputas na atual conjuntura portuguesa.
De Brasil de Fato
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