“Perguntam -me com frequência o que é que me faz mais falta na vida, e eu respondo sempre a verdade: «Um escritor.» A piada não é tão parva como parece. Se alguma vez me deparasse com o compromisso inevitável de escrever um conto de quinze páginas para esta noite, recorreria às minhas incontáveis notas atrasadas e tenho a certeza de que chegaria a tempo à tipografia. Talvez fosse um conto muito mau, mas o compromisso seria cumprido, que ao fim e ao cabo é a única coisa que quis dizer com este exemplo de pesadelo. Em contrapartida, não seria capaz de escrever um telegrama de parabéns nem uma carta de pêsames sem dar cabo do fígado durante uma semana.
Para estes deveres indesejáveis, como para tantos outros da vida social, a maioria dos escritores que conheço quis apelar aos bons ofícios de outros escritores. Uma boa prova do sentido quase bárbaro da honra profissional é sem dúvida esta nota que escrevo todas as semanas, e que por estes dias de outubro vai fazer os seus primeiros dois anos de solidão. Só uma vez faltou neste canto, e não foi por culpa minha: por uma falha de última hora nos sistemas de transmissão. Escrevo-a todas as sextas-feiras, das nove da manhã até às três da tarde, com a mesma vontade, a mesma consciência, a mesma alegria e muitas vezes com a mesma inspiração com que teria de escrever uma obra-prima.
Quando não tenho o assunto bem definido deito-me mal na noite de quinta-feira, mas a experiência ensinou-me que o drama se resolverá por si só durante o sono e que começará a fluir de manhã, a partir do instante em que me sente diante da máquina de escrever. Não obstante, tenho quase sempre vários assuntos pensados antecipadamente, e pouco a pouco vou recolhendo e ordenando os dados de diferentes fontes e verificando-os com muito rigor, pois tenho a impressão de que os leitores não são tão indulgentes com as minhas argoladas como talvez o fossem com o outro escritor de que preciso.
O meu primeiro propósito com estas crónicas é que todas as semanas ensinem alguma coisa aos leitores comuns e correntes, que são os que me interessam, embora esses ensinamentos pareçam óbvios e talvez pueris aos sábios doutores que tudo sabem. O outro propósito – o mais difícil – é que estejam sempre tão bem escritas como eu seja capaz de fazer sem a ajuda do outro, porque sempre achei que a boa escrita é a única felicidade que se basta a si própria. Impus-me esta servidão porque sentia que entre um romance e outro me restava muito tempo sem escrever, e pouco a pouco – como os jogadores de beisebol – ia perdendo o aquecimento do braço. Mais tarde, essa decisão artesanal converteu-se num compromisso com os leitores, e hoje é um labirinto de espelhos do qual não consigo sair. A não ser que encontrasse, claro está, o escritor providencial que saísse por mim. Mas receio que já seja demasiado tarde, visto que as únicas três vezes que tomei a determinação de não escrever mais estas crónicas mo impediu, com o seu autoritarismo implacável, o pequeno argentino que também eu tenho dentro.
A primeira vez que o decidi foi quando tentei escrever a pri- meira, depois de mais de vinte anos de não o fazer, e precisei de uma semana de galeote para a terminar. A segunda vez foi há mais de um ano, quando estava a passar uns dias de descanso com o general Omar Torrijos na base militar de Farallón, e o dia estava tão diáfano que apetecia mais navegar do que escrever. «Mando um telegrama ao diretor a dizer que hoje não há crónica, e pronto», pensei, com um suspiro de alívio. Mas não consegui almoçar por causa do peso da má consciência e, às seis da tarde, fechei-me no quarto, escrevi numa hora e meia a primeira coisa que me ocorreu e entreguei a crónica a um ajudante de campo do general Torrijos para que a enviasse por telex a Bogotá, com o pedido de que a mandassem de lá para Madrid e para o México. Só no dia seguinte soube que o general Torrijos tivera de ordenar o envio de um avião militar ao aeroporto do Panamá, e dali, de helicóptero, ao palácio presidencial, de onde me fizeram o favor de distribuir o texto por algum canal oficial.
A última vez, faz agora seis meses, que descobri ao acordar que já tinha maduro no coração o romance de amor que tanto tinha ansiado escrever desde há tantos anos e que não tinha outra alternativa senão nunca o escrever ou submergir-me nele de imediato e a tempo inteiro. Não obstante, na hora da verdade, não tive tomates suficientes para renunciar ao meu cativeiro semanal, e pela primeira vez estou a fazer uma coisa que me pareceu sempre impossível: escrevo o romance todos os dias, letra por letra, com a mesma paciência, e oxalá com a mesma sorte, com que as galinhas debicam nos pátios, e ouvindo cada dia mais perto os passos temíveis do animal grande da próxima sexta-feira. Mas aqui estamos outra vez, como sempre, e oxalá para sempre.
Eu já suspeitava que nunca escaparia desta jaula desde a tarde em que comecei a escrever esta crónica na minha casa de Bogotá e a terminei no dia seguinte sob a proteção diplomática da Embaixada do México; continuei a suspeitá-lo na estação de telégrafos da ilha de Creta, uma sexta-feira do passado mês de julho, quando consegui entender-me com o funcionário de turno para que transmitisse o texto em castelhano. Continuei a suspeitá-lo em Montreal, quando tive de comprar uma máquina de escrever de emergência porque a voltagem da minha não era a mesma do hotel. Acabei de suspeitá-lo para sempre faz apenas dois meses, em Cuba, quando tive de trocar duas vezes as máquinas de escrever porque se negavam a entender-se comigo. Por último, levaram-me uma eletrónica de costumes tão avançados que acabei por escrever à mão num caderno de folhas quadriculadas, como nos tempos remotos e felizes da escola primária de Aracataca.
Todas as vezes que acontecia um destes percalços apelava com mais ansiedade aos meus desejos de ter alguém que se encarregasse da minha boa sorte: um escritor. Contudo, nunca senti essa necessidade de um modo tão intenso como um dia de há muitos anos em que cheguei à casa de Luis Alcoriza, no México, para trabalhar com ele no guião de um filme. Encontrei-o, consternado, às dez da manhã, porque a cozinheira lhe tinha pedido o favor de escrever uma carta ao diretor da Segurança Social. Alcoriza, que é um escritor excelente, com uma prática quotidiana de caixa de banco, que tinha sido o escritor mais inteligente dos primeiros guiões para Luis Buñuel e, mais tarde, para os seus próprios filmes, tinha pensado que a carta seria um assunto de meia hora. Mas encontrei-o, louco de fúria, no meio de um montão de papéis rasgados, nos quais não havia muito mais que todas as variantes concebidas da fórmula inicial: pela presente tenho o prazer de me dirigir a V. Ex.a para…
Tentei ajudá -lo, e três horas depois continuávamos a fazer rascunhos e a rasgar papel, já meio bêbedos de genebra com vermute e empanturrados de chouriços espanhóis, mas sem ter conseguido passar além das primeiras letras convencionais. Nunca esquecerei a cara de misericórdia da boa cozinheira quando voltou para vir buscar a sua carta às três da tarde e lhe dissemos sem pudor que não tínhamos conseguido escrevê-la. «Mas é muito fácil – disse -nos ela, com toda a sua humildade. – Olhe lá.» Nessa altura começou a improvisar a carta com tanta precisão e tanto domínio que Luis Alcoriza se viu em apuros para a copiar na máquina com a mesma fluidez com que ela a ditava. Naquele dia – como ainda hoje – fiquei a pensar que talvez aquela mulher, que envelhecia sem glória no limbo da cozinha, fosse o escritor secreto que me fazia falta na vida para ser um homem feliz.”
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