Foto: © Tânia Rêgo/Agência Brasil
Ao menos 208 indígenas foram assassinados no Brasil ao longo do ano de 2023. O dado consta do relatório Violência Contra os Povos Indígenas, que o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) divulgou na tarde desta segunda-feira (22).
Este é o segundo pior resultado registrado desde 2014, quando o conselho, vinculado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), passou a recorrer a dados oficiais para contabilizar homicídios de indígenas. A metodologia não leva em conta 17 homicídios que os autores do documento classificaram como culposos, ou seja, não intencionais.
O número de assassinatos no ano passado é inferior apenas ao registrado em 2020, quando 216 indígenas morreram de forma violenta – em um primeiro momento, o conselho chegou a divulgar que 182 indígenas tinham sido mortos naquele ano, mas a informação foi posteriormente corrigida.
Os 208 assassinatos em 2023 significam aumento da ordem de 15,5% em comparação ao número registrado em 2022 (180). O resultado vai na contramão da redução do número de homicídios no país. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, os assassinatos diminuíram 3,4% em 2023, na comparação com 2022.
Os autores da publicação, contudo, destacam que, este ano, acessaram uma base de dados “mais completa e atualizada” para tabular os casos de assassinatos, suicídios, mortalidade infantil e mortes por desassistência à saúde entre indígenas, o que pode ter resultado em números mais altos, dificultando a comparação com anos anteriores.
Ainda de acordo com o Cimi, em 2023 os estados de Roraima (47), Mato Grosso do Sul (43) e Amazonas (36) encabeçaram o ranking das unidades da federação com maior número de assassinados. Juntos, esses três estados totalizam quase 40% dos homicídios registrados em 26 das 27 unidades federativas. A maioria (171) das vítimas tinha entre 20 e 59 anos e foram identificadas como homens (179), enquanto as demais 29 foram registradas como mulheres.
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“O ambiente institucional de ataque aos direitos indígenas foi espelhado, nas diversas regiões do país, pela continuidade das invasões, conflitos e ações violentas contra comunidades e pela manutenção de altos índices de assassinatos, suicídios e mortalidade na infância entre estes povos”, acrescentam os responsáveis por elaborar o documento.
Os dados do anuário são compilados por equipes do próprio Cimi, a partir da base do Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM) e de informações obtidas junto à Secretaria de Saúde Indígena (Sesai) por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI). O Cimi contabilizou 203 óbitos por agressão contra indígenas em 2021; 216 em 2020; 196 em 2019; 135 em 2018; 110 em 2017; 118 em 2016; 137 em 2015 e 138 em 2014.
“As disputas em torno dos direitos indígenas no [âmbito dos] três Poderes da República refletiram-se, em 2023, em um cenário de continuidade das violências e violações contra os povos originários e seus territórios”, aponta o Cimi no relatório, acrescentando que o ano passado foi marcado por uma série de conflitos territoriais e assassinatos envolvendo brigas ou desavenças, muitas vezes potencializadas por bebida alcoólica.
O relatório do Cimi contém dados igualmente “preocupantes” relativos a outras formas de violência contra os povos indígenas no Brasil. De acordo com os dados, ao menos 670 crianças indígenas entre zero e 4 anos de idade morreram por causas evitáveis, ou seja, “em decorrência de enfermidades, transtornos e complicações que poderiam ter sido controladas por meio de ações de atenção à saúde, imunização, diagnóstico e tratamento adequado”. O relatório registra ainda que pelo menos 180 indígenas tiraram suas próprias vidas.
Em relação aos direitos territoriais, o Cimi registra 1.276 casos de violência, distribuídos entre os subtipos de ocorrência omissão e morosidade na regularização de terras (850); conflitos (150) e invasões, exploração ilegal de recursos naturais e danos diversos ao patrimônio (276).
O relatório também denuncia o que tipifica como “violência por omissão do poder público”, destacando o que os autores classificam como casos de desassistência geral (66 ocorrências), além de episódios na área da educação escolar (61) e na saúde (100).
O Cimi critica a falta de sinalização clara do governo federal na defesa dos territórios indígenas, principalmente no tocante à indefinição quanto à aprovação da Lei nº 14.701, que estabelece o chamado marco temporal.
Pela tese, os indígenas só têm direito aos territórios originários que ocupavam ou já reivindicavam até 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal. Pouco antes de deputados federais e senadores aprovarem a lei, o Supremo Tribunal Federal (STF) tinha apontado a inconstitucionalidade da tese apenas.
O que motivou o presidente Luiz Inácio Lula da Silva a vetar este ponto. Em dezembro, contudo, o Congresso Nacional derrubou o veto de Lula, mantendo o marco temporal.
A queda de braço entre Executivo e Legislativo foi judicializada por setores favoráveis e contrários à lei. Em abril, o ministro Gilmar Mendes, do STF, determinou a instauração de um processo de conciliação, suspendendo o julgamento de qualquer ação que trate do tema. A previsão é de que a comissão criada para tentar estabelecer um acordo entre as partes comece a funcionar no próximo dia 5 de agosto.
“A morosidade e a ausência de uma sinalização clara do governo federal em defesa dos territórios indígenas tiveram influência direta no alto número de conflitos registrados, muitos deles com intimidações, ameaças e ataques violentos contra comunidades indígenas”, apontam os autores do relatório, destacando que, de 1.381 terras e demandas territoriais indígenas existentes, 850 (ou 62%) seguem com pendências administrativas para sua regularização.
“Destas, 563 ainda não tiveram nenhuma providência do Estado para sua demarcação. Em 2023, os maiores avanços [em termos de políticas indígenas] ocorreram na constituição ou reestruturação de grupos técnicos (GTs) para a identificação e delimitação de terras indígenas, sob responsabilidade da Funai. É um indicativo da disposição do órgão em dar andamento à primeira etapa na regularização de demandas territoriais represadas há anos.”
O relatório indica, contudo, que os trabalhos avançam a passos lentos: “apenas três relatórios de identificação e delimitação foram concluídos e publicados pela Funai em 2023. E a indefinição sobre o marco temporal torna impossível uma previsão acerca do cumprimento dos prazos estabelecidos nas portarias, na medida em que o governo hesita e utiliza a Lei 14.701/2023 como justificativa para não avançar nos procedimentos demarcatórios”, conclui o Cimi.
Segundo a Funai, após seis anos de paralisação dos processos demarcatórios, o governo federal homologou, no ano passado, oito novas terras indígenas e a União destinou mais de R$ 200 milhões para ações de proteção e demarcação territorial. Além disso, cerca de R$ 5,3 milhões foram destinados ao pagamento de indenizações por benfeitorias a ocupantes de boa-fé retirados de terras indígenas.
Consultados, os ministérios dos Povos Indígenas; da Justiça e Segurança Pública e da Saúde informaram não ter tido acesso prévio ao relatório divulgado nesta tarde e que se manifestarão após analisar o documento.
Consultados, os ministérios dos Povos Indígenas e da Saúde informaram não ter tido acesso prévio ao relatório divulgado esta tarde e que se manifestarão após analisar o documento.
Em nota, o Ministério da Justiça e Segurança Pública informou que a Força Nacional de Segurança Pública tem atuado em terras indígenas, sob demanda, para auxiliar outros órgãos a manter a ordem pública e garantir a segurança e integridade patrimonial e das pessoas.
Ainda segundo a pasta, só no primeiro semestre deste ano, agentes da tropa federativa participaram de operações em 21 áreas indígenas de nove unidades federativas, incluindo ações de combate ao garimpo ilegal, remoção de não-indígenas, proteção dos recursos naturais, policiamento ostensivo e fiscalização ambiental.
Além das operações, a Força Nacional também trabalha na desintrusão das terras Yanomami, Karipuna, Arariboia, Kayapó, Munduruku, Uru-Eu-Wau-Wau e Trincheira Bacajá, esta última, já concluída e, atualmente, em fase de monitoramento da região e elaboração de um plano de sustentabilidade do território.
A nota do Ministério informa ainda que as desocupações correm no âmbito da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 709, expedida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em novembro de 2023. A Suprema Corte homologou os planos operacionais de retirada de invasores dos sete territórios, destacando a necessidade de planejamentos semelhantes e adaptados à realidade de cada comunidade.
“Além disso a Secretaria de Acesso à Justiça (Saju) mantém diálogo constante com comunidades indígenas e com organizações como o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), recebendo e articulando as demandas das populações dentro do MJSP e com outros órgãos do Governo Federal a fim de garantir a efetivação dos direitos dos povos indígenas”, concluiu a pasta.
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