Show do Chico Science & Nação Zumbi nos Estados Unidos em 1994 – Foto: Paulo André/ Maria F. Moreno/Wikimedia Commons/CC BY 3.0 BR via ECA-USP
A primeira edição da Revista Música deste 2024, da Escola de Comunicação e Artes (ECA) da USP, mostra que apenas 1% dos conhecimentos presentes nos currículos dos cursos superiores em música no Brasil é dedicado às culturas afrobrasileiras. O levantamento foi realizado em 2023 pelo pesquisador Luis Ricardo Silva Queiroz, professor da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), e compõe o dossiê temático “Música e relações étnico-raciais: perspectivas críticas”, desta edição.
A publicação reúne 15 artigos escritos por pesquisadores de todo o Brasil e que buscam reconstruir os estudos musicais se pautando pela “produção intelectual negra”, como destaca a apresentação do volume. Nesse texto, os editores convidados, Eduardo Guedes Pacheco e Felipe Merker Castellani, ambos da Universidade do Estado do Rio Grande do Sul (UERGS), apresentam um histórico do movimento negro brasileiro e dados sobre a baixíssima utilização de referências musicais afrobrasileiras na academia.
“Este dossiê busca contribuir com a produção de conhecimento acadêmico, no entanto, o faz por meio das sonoridades que são produzidas fora do contexto que é tratado como majoritário.“ (Eduardo Guedes Pacheco e Felipe Merker Castellani, UERGS)
“Escavando as memórias negras aterradas sob a lama da Manguetown” é um dos artigos presentes no dossiê. Escrito por Renato de Lyra Lemos, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), o texto se propõe a lançar um olhar não oficial sobre o movimento Mangue, por meio das narrativas de interlocutores negros que foram apagados de sua história.
Mangue, manguebit ou manguebeat é um estilo musical e movimento cultural que nasceu em Pernambuco na década de 1990. Seu ritmo é marcado pela influência de diversos gêneros locais — como o maracatu, o samba-reggae e o afoxé — e internacionais, como o hip-hop. Suas composições apresentam um caráter de crítica social, ao relatar com indignação a realidade de bairros periféricos de Pernambuco, como o de Peixinhos, e da população negra.
O manguebeat surgiu tendo como símbolo a imagem de uma antena parabólica enfiada na lama – Foto: Modulação/O Recifense e a Contemporaneidade via ECA-USP
O nome do movimento vem dos manguezais, um ecossistema de regiões litorâneas coberto por lama que funciona como um berçário para diversas espécies de animais. De acordo com o autor, no último século, muitos deles foram aterrados para abrir espaço para a urbanização, “assim como aconteceu com as casas dos cidadãos negros da região. Dos mangues da cidade, restou uma água suja infectada por rios que recebem água de esgoto e uma vegetação que vive sendo agredida e a qual acumula muita sujeira”.
Foi nesse cenário que o manguebeat surgiu, tendo como símbolo a imagem de uma antena parabólica enfiada na lama. Essa ideia foi apresentada ao público pela primeira vez em 1992, no manifesto Caranguejos com cérebro, redigido pelo jornalista Fred O4, conhecido como vocalista e músico da banda Mundo Livre S/A. Nele, o artista apresenta a destruição do bioma dos manguezais, da cidade e das pessoas que nela residem para a chegada do suposto “progresso”. E, para trazer a vida de volta à Manguetown (cidade do mangue), apenas o movimento contracultural que estava surgindo.
Os nomes mais conhecidos do manguebeat são os de Chico Science e sua banda, a Nação Zumbi. Os dois primeiros álbuns do grupo, Da Lama ao Caos (1994) e Afrociberdelia (1995), atingiram a marca de disco de ouro, isto é, venderam mais de 100 mil cópias. Esse sucesso não ficou restrito apenas à cena cultural do Recife, mas se espalhou pelo Brasil e pelo mundo, com turnês pela Europa e Estados Unidos.
Após mais de 30 anos do início do movimento e mesmo com a precoce morte de Chico em 1997, o manguebeat continua desempenhando uma importante função cultural e social, com direito a homenagens, shows e até um documentário na comemoração de seu aniversário. Renato, entretanto, ressalta em seu artigo que tamanha visibilidade não é distribuída de forma igualitária entre os participantes do mangue. Pelo contrário, alguns grupos que tiveram grande papel na construção do movimento foram completamente invisibilizados na história que é amplamente veiculada pela mídia.
O pesquisador explica que isso aconteceu devido às posições sociais daqueles que alcançaram os holofotes, uma vez que eles eram, em sua maioria, brancos, de classe média e universitários, então tinham fácil acesso a jornalistas, produtores e artistas, por exemplo. “Esse núcleo teve acesso a algo muito importante que o pessoal de Peixinhos não tinha: os contatos certos”, afirma Renato.
Peixinhos é um bairro pobre da região metropolitana de Recife e foi um “importante berçário para o movimento mangue”. O pessoal de lá corresponde a outros músicos que já tocavam no bairro e abriram espaço para a produção que Chico Science, Fred O4 e suas bandas viriam a fazer. A principal influência foi a do Lamento Negro, um bloco afro de samba reggae sediado em Peixinhos, o qual Chico frequentou por algum tempo.
“A cena de Peixinhos continua sempre ficando à margem, parecendo que foi algo menor, apenas transitório, que serviu como estímulo inicial, mas como se os elementos que se desenvolveram depois dali não tivessem mais nenhum vínculo nem devessem nenhuma consideração àquele lugar.” (Renato de Lyra Lemos, doutor em Antropologia pela UFPE)
Com o objetivo de dar mais visibilidade às narrativas que foram apagadas da história do manguebeat, Renato realizou um extenso processo de recuperação do passado através de recortes, memorabília, conversas e depoimentos. “Como essas memórias negras geralmente não estão contidas nos arquivos oficiais, para reconstruí-las é necessário recorrer a alguns rastros de informação, como o trabalho de um arqueólogo, escavando esses fragmentos das memórias”, afirma o autor.
Um dos exemplos mais marcantes de reconstrução dessa história presente no artigo é a fala de Maia Nomoni, um dos mestres fundadores do bloco Lamento Negro. No evento em comemoração aos 30 anos de musicalidade afro no movimento manguebeat, promovido pelo Movimento Negro Unificado de Pernambuco em novembro de 2023, Maia afirmou:
Renato de Lyra Lemos – Foto: CNPq/Lattes via ECA-USP
“Ninguém nunca chamou nós, a pretitude, que é de onde começa o movimento Mangue, pra fazer uma roda de diálogo. […] Quando a gente fala do movimento Mangue é por causa do nome que foi dado, a simbologia. Até porque no mangue, quem ia pegar os frutos eram nós, pretos, eram os nossos pais e as nossas mães, eram nós aqui. Então esse é o primeiro órgão que chama a nós, os embriões, a pedra fundamental, a árvore genealógica, para que isso [o movimento Mangue] esteja aqui. E quando tem os 30 anos do movimento Mangue ninguém nunca chama, né? […] Aí a gente vê como o racismo é muito perto da gente. Porque se fossem os branquinhos de lá, estava a imprensa, estava todo mundo lá, mas aí como é uma negrada, que vêm da periferia, que vêm da favela, não está a imprensa aqui, porque eles dão invisibilidade pro que a gente construiu lá atrás.” (sic)
Renato conclui seu artigo ressaltando a importância de figuras como Chico Science para o manguebeat e para a cultura brasileira. Porém, ele também se propõe a dar um pouco de visibilidade às outras histórias do movimento que permanecem soterradas sob a lama do mangue e do racismo estrutural do Brasil.
Fundada em 1990, a Revista Música é uma publicação semestral do Programa de Pós-Graduação em Música (PPGMUS) da ECA USP, voltada para a divulgação de artigos acadêmicos, resenhas, traduções e entrevistas sobre a área musical.
Nesta edição , você também pode encontrar dois artigos de autores ecanos: “Fred Moten e a vanguarda sentimental negra”, de Romulo Alex Inacio, e “Arte e pensamento negro como epistemologias críticas: contribuições para o ensino de música”, de Stefani Silva Souza.
Assine as notícias da Guatá e receba atualizações diárias.