A insurreição aconteceu em 1833 na área rural do sul de Minas Gerais – Arte: Nazura
Cinquenta e cinco anos antes de, em 1888, o 13 de maio entrar para a história como o dia em que a princesa Isabel assinou formalmente a abolição da escravidão (tornando o Brasil o último país latino-americano a fazê-lo), outro episódio marcaria a data como um dia que abalou a estrutura escravista do Império. A Revolta de Carrancas foi a maior e mais sangrenta rebelião escrava do Sudeste.
Com o patriarca Gabriel Junqueira de viagem no Rio de Janeiro cumprindo funções de deputado, a administração da fazenda, cujo lucro era extraído do trabalho forçado de cerca de 100 escravizados, estava a cargo de seu filho, de mesmo nome. Apelidado de “senhor moço” pelos escravizados, Gabriel era juiz de paz, uma espécie de delegado de polícia.
Era quase meio-dia quando ele foi a cavalo até a lavoura supervisionar o trabalho. De surpresa, foi derrubado do seu animal pelo escravizado Domingos Crioulo e morto a pauladas e foiçadas por outros dois, Julião Congo e Ventura Mina. Este último foi o principal articulador do levante.
De acordo com o que disse Julião Congo mais tarde no interrogatório, neste momento “o cavalo fugiu e um moleque fiel o cavalgou” para contar correndo à família do senhor o que estava acontecendo. O nome do jovem, escravizado como os companheiros que delatou, era Francisco.
Por conta disso, quando se aproximaram da sede da fazenda, os insurgentes perceberam que dois cavaleiros armados já os esperavam. Foram então para a vizinha Fazenda Bela Cruz, de José Francisco Junqueira, irmão do deputado.
Na roça, os rebeldes liderados por Ventura Mina se encontraram com Joaquim Mina, referência entre os trabalhadores negros da Fazenda Bela Cruz. O grupo de sete pessoas saltou para cerca de 35. O ataque à sede da propriedade resultou na morte, com extrema violência, de todos os sete brancos da família Junqueira que estavam ali, inclusive três crianças, sendo uma delas recém-nascida. No início da noite, o genro do fazendeiro foi assassinado em uma emboscada quando cruzou a porteira.
Parte dos rebelados seguiu para a Fazenda do Jardim. Ali, o proprietário João Cândido da Costa tinha trancado todos os escravizados na senzala, com exceção de dois. Eram de sua confiança e, armados, se juntaram aos homens brancos que receberam à bala os insurgentes. No confronto morreram Ventura Mina, Inácio, Matias, Firmino e Antônio Cigano. Outros se refugiaram no mato. Alguns levaram dias para serem capturados.
No artigo “Contam que houve uma porção de enforcadas. E as caveiras espetadas nos postes”: literatura e oralidade na Revolta dos Escravos de Carrancas (Estudos Históricos), Marcos de Andrade relata que a liderança de Ventura Mina foi destaque nos depoimentos e processos do caso.
“No libelo acusatório, ele foi descrito como um escravo que tinha um ‘gênio fogoso e ardente, era empreendedor, ativo, laborioso, tinha uma grande influência sobre os réus e estranhos de quem era amado, respeitado e obedecido’”, diz o artigo.
Alguns dos seus 31 companheiros de cativeiro que foram presos alegaram ter participado do levante por medo de Ventura — não se sabe se em relato verídico ou porque, afinal de contas, ele já estava morto. Fato é que a justificativa não aliviou: 17 pessoas foram condenadas à forca.
Um deles, José Mina, disse em depoimento que a insurreição estava sendo planejada havia dois anos. Damião — que assim como Joaquim Mina, Jerônimo e Roque Crioulos, foi apontado como organizador da revolta ao lado de Ventura Mina — não deu o prazer aos escravistas mineiros de verem seu assassinato. Enforcou a si próprio antes disso.
O único condenado que conseguiu evitar a pena de morte foi Antônio Resende. “Mas com a condição de enforcar os demais companheiros de luta, além de ter exercido a função de carrasco pelo resto de sua vida. Era mantido preso na cadeia de São João del-Rei”, contou Andrade ao jornal Brasil de Fato.
A Revolta de Carrancas deixou 30 mortos: 21 pessoas negras e nove brancas.
Em uma investigação sobre “a memória do cativeiro” que persiste até hoje na região, Marcos de Andrade soube de um lugar em Cruzília (MG) chamado de Cabeça Branca. Ali teriam sido colocadas as cabeças dos insurgentes em estacas. Com o tempo, só se viam os crânios brancos, daí o nome.
O pesquisador encontrou anotações da genealogista Mariana de Andrade Bueno, trineta de José Francisco Junqueira, mencionando que uma das cabeças teria sido enviada “de lembrança” para uma das filhas do fazendeiro, Ana Francisca Junqueira. Ela a teria deixado espetada na entrada da fazenda do Chapadão, de sua propriedade.
Menos de um mês depois daquele 13 de maio de 1833, o temor e a revanche das elites escravocratas tomaram forma de Projeto de Lei (PL). Apresentado no Parlamento nacional pelo então ministro da Justiça, Aureliano de Souza e Oliveira Coutinho, o texto propunha a agilidade, sem recurso, do julgamento de escravizados insurretos e que atentassem contra a vida de seus senhores.
A lei que estabeleceu um rito sumário para condenar pessoas negras à pena de morte no Brasil durou até 1891. Foi aprovada em 10 de junho de 1835, meses depois da Revolta dos Malês, em Salvador (BA).
O historiador João José Reis, estudioso das rebeliões negras da Bahia na primeira metade do século 19, destaca que o levante mineiro “teve uma influência sobre a repressão que se seguiu à dos malês porque apressou a implementação da lei, criada depois de Carrancas”.
“A maior rebelião escrava da província de Minas Gerais, que amedrontou a elite escravista do Sudeste, contou com a participação de cativos de origens diversas: minas, angolas, benguelas, congos, cassanges e moçambiques. Escravos falantes de bantu também tiveram presença significativa”, descreve João José Reis.
“E além dos escravos de origem africana, os crioulos – nativos e/ou filhos de escravas com brancos – também tiveram um envolvimento significativo”, completa.
A Revolta dos Malês teve outra característica. “Os envolvidos eram todos africanos natos e concentrados em torno de alguns grupos étnicos – ou nações africanas -, em particular os nagôs (falantes do iorubá), e a religião (Islã) teve um papel central na sua concepção e encaminhamento”, explica Reis.
A década de 1830 no Brasil foi conturbada. Quando Dom Pedro I abdicou do trono em 1831, seu filho tinha cinco anos. Assim, o país foi governado por regentes e duas grandes correntes das elites políticas disputavam o poder: os liberais moderados (monarquistas que consideravam D. Pedro I absolutista) e os caramurus (ou restauradores, que defendiam a volta de D. Pedro I ao poder). Os Junqueira se filiavam à primeira.
Em 22 de março de 1833, poucos meses antes de a Revolta de Carrancas eclodir, Ouro Preto (que era a capital mineira) foi tomada pelos caramurus. Composto principalmente por comerciantes portugueses e militares, o grupo depôs o governador e assumiu, durante dois meses, o poder da província de Minas Gerais.
Os fatos e boatos envolvendo o evento — que ficou conhecido como Sedição Militar ou Revolta do Ano da Fumaça — se espalharam e chegaram aos escravizados do sul de Minas. Uma fake news teria tido impacto de peso: a de que os caramurus estariam libertando os escravizados em Ouro Preto.
De acordo com os documentos analisados por Marcos de Andrade, uma figura aparece como principal propagadora do boato. “Francisco Silvério era fazendeiro e negociante, circulava por várias fazendas da região e dependia do acesso aos caminhos e às estradas que passavam por várias propriedades”, descreve no artigo A pena de morte e a revolta dos escravos de Carrancas: a origem da “lei nefanda” (Revista Tempo).
Silvério, conta Andrade, se tornou inimigo da família Junqueira e aliado dos militares que tinham tomado a província. “Como era negociante e precisava circular pelas entradas da região, tinha uma demanda antiga contra alguns proprietários da freguesia de Carrancas e consegue a liberação de uma estrada justamente durante a Sedição”, diz.
Para o historiador, não há dúvida que o rumor teve “um papel crucial na Revolta” por conta “da expectativa de liberdade”: “O boato veiculado por Francisco Silvério de que os caramurus aboliram a escravidão em Ouro Preto caiu como um rastilho de pólvora nas senzalas, na medida em que foi difundido por Ventura Mina”.
“Os escravos de fato acreditaram”, afirma Andrade, “que ali na região de Carrancas os liberais moderados os escravizavam ilegalmente”.
“Do ponto de vista histórico sabemos que os caramurus pertenciam à elite escravista. Inclusive o Francisco Silvério Teixeira possuía 19 escravos. No caso dele, parece que foi mais uma estratégia para pôr fim ao domínio da família Junqueira e seus aliados na região”, ressalta.
Já em relação à leitura política feita pelos escravizados, Andrade avalia que “ali mesmo nas propriedades da família Junqueira eles perceberam não só a ascensão política e econômica de seus senhores, mas também as desavenças e as inimizades que se instauram. Portanto, se ser caramuru era sinônimo de lutar pela liberdade, mesmo que de forma tão violenta, eles se tornaram caramurus”.
A reação da Regência à Revolta de Carrancas teve uma dupla estratégia, diz Andrade. Por um lado, a punição mortal e exemplar. Por outro, o quase silenciamento sobre o tema na imprensa e nos discursos parlamentares.
Mas este não é único motivo que, na opinião do historiador, explica que a rebelião seja tão pouco conhecida. Tem a ver, aponta, com o “percurso da historiografia brasileira”.
“A Revolta de Carrancas ocorreu numa área rural e a documentação mais importante sobre ela, os autos-crime, encontrava-se ‘adormecida’ no arquivo do Museu Regional de São João del-Rei”, explica.
Foi só em 1992 que um projeto feito por uma instituição acadêmica pública e pela então Fundação de Ensino Superior de São João del-Rei (atual UFSJ) mapeou o acervo. Marcos Ferreira de Andrade era bolsista deste projeto. O material “trazia uma história inédita e completamente desconhecida da historiografia”, salienta.
Até hoje descobertas são feitas sobre o episódio. Recentemente, por meio da “memória oral” a respeito “de um justiçamento dos escravos mortos em confronto”, conta Andrade, ao anunciar que em breve serão lançadas duas novas produções sobre o tema: um livro e um documentário.
Há exatos 191 anos atrás, em 13 de maio de 1833, aconteceu a Revolta de Carrancas. Dois anos depois, em 13 de maio de 1835, quatro insurgentes da Revolta dos Malês foram executados. Mais de meio século depois, em 13 de maio de 1888, é assinada a Lei Áurea.
“Se tratam apenas de coincidências de datas de eventos muitos distintos e distantes entre si”, comenta Marcos Ferreira de Andrade. Mas estão “intimamente relacionados à vigência da escravidão no Brasil, em um contexto de sua intensificação e de posterior desagregação, além de reportarem ao calendário das revoltas escravas mais emblemáticas que ocorreram na década de 1830”. Assim, completa, “não deixam de representar uma daquelas ironias da história”.
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