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Crédito: Wemerson Dablioe
Os primeiros raios de sol reluziam na passarela do mundo. Na curva da trilha, o Sol riscava com mais intensidade. Parecia iluminar alguém. Uma bola de luz marcava o chão, deslizava pelo céu, e convidava o olhar.
Naquela hora não era comum encontrar pessoas na passarela, até mesmo porque o mundo dormia. Poderia ser um vizinho das imediações, mas também não era muito provável naquele horário.
Poderia ser um reflexo das árvores ou coisa da mata. Poderia. Poderia ser tudo naquele momento. Poderia inclusive o menino seguir o caminho da luz, observar o local sem avançar ou voltar. Se voltasse não saberia que luz era aquela.
Os sabiás intensificaram o canto, naquele vai e vem do pensamento. O canto era um convite para um bom dia pelas asas amarelas da mata. O menino, numa vontade de ir com pouca coragem, caminhava cauteloso com a mão no guarda-corpo, de forma silenciosa, aproveitando o canto dos voadores, para não despertar a atenção.
Há poucos metros da luz, a bola iluminada começa a se movimentar com movimentos mais rápidos e bruscos. Uma dor ataca o peito. As pernas tremem. A mão sua. Voltar seria mostrar preocupação ou fraqueza. A luz, que antes brilhava, ganha abrigo improvisado rapidamente, em uma mochila.
Um senhor grisalho, de traço oriental e olhos estrelados, não responde ao cumprimento matinal. Ele não se mexe, não pisca e não fala. O único movimento que faz de maneira involuntária é guardar a lanterna na bolsa. Permanece calado e imóvel durante o encontro.
Parecia um ser da mata. Lembrava uma árvore. Traje amadeirado, cabelos ensebados e mãos pintadas com tinta fresca. Mostrava que tinha uma história em movimento. O menino segue a trilha e, na curva, para para cuidar do senhor, entre as frestas das árvores.
Como um ser da floresta, o senhor desce a trilha. Minutos depois, em rito de saudação com a cabeça, o senhor demonstra sinal de aproximação. Puxa um pote de tinta, tira vários pincéis e folhas de papel da bolsa. Mostra as cartas que já havia escrito. Com as letras no papel, riscando os ideogramas, esforça-se para contar o que estava fazendo ali.
Era um senhor, calígrafo, aposentado, que precisava concentrar-se para fazer o que ele mais gostava: escrever com tinteiro no papel. Havia encontrado inspiração para desenhar os mais belos ideogramas chineses para a sua coleção.
Ele também tinha medo dos bichos, por isso usava lanterna. Havia dormido nas imediações e queria aproveitar o fim da madrugada. Seu tinteiro de cerâmica era um amuleto, guia, companheiro. Com a mão sobre o papel e olhar compenetrado nas quedas d’água, ele deslizava a tinha sobre o papel.
Mostrava que o tempo era a coisa mais importante para escrever. “Escrever com tinta não pode ter erro. Não é rápido, nem devagar.” Dizia que não era uma questão de medo ou coragem. Era preciso ter imaginação, equilíbrio.
O segredo passava pela quantidade de tinta que se deposita em um local durante o tempo. “O calígrafo deve ritmar seus movimentos de modo que a cada traço receba a quantidade de tinta necessária, nem mais, nem menos. É como as águas deste lugar. Elas fluem de forma rítmica. Eu preciso de concentração e de uma palavra para contar sobre este momento.”
“Há 40 anos, caminho com o mesmo tinteiro; e há 50, desenho. Sou calígrafo, minha profissão zela pelo desenho artístico dos ideogramas chineses.” O mestre Huang, como era conhecido do outro lado do globo, já havia escrito milhares de cartas, produzido milhares de cartazes, mas ainda não havia pintado as cores do Iguaçu.
O mestre da lanterna também tinha cuidado. Registrou o canto do sabiá das águas do Iguaçu, às margens da passarela do mundo. O sabiá anunciava que aquele era seu território, enquanto o calígrafo desenhava o cheiro da mata. Demonstrava que não era preciso escrever muito. Pensar em poucas palavras era a chave do conhecimento. Era preciso desenhar a fala, saborear as palavras, entender a natureza, pensar como sabiá, que sapateava ao lado do tinteiro e vivia seu momento com sua palavra.
O menino, curioso pelas palavras, pergunta o que significa Brasil, pintado no papel em dois belos ideogramas, 巴西, que em piyin, forma romanizada de leitura, lê-se Bāxī.
“Brasil é esperança, oeste, ocidente. Faz sentido pra você”?, diz o mestre que produziu seu próprio tinteiro e pincel e que deseja, quando partir para outro mundo, ser enterrado com seu tinteiro e suas cores. O sabiá, inspirado no encontro, estufa o peito, pinta a pata e parte, vivendo apenas o momento.
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