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Sexto Sentido, um conto de Sidney Giovenazzi
Sexto Sentido, um conto de Sidney Giovenazzi
11 de fevereiro de 2023
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Imagem: Marc Chagall
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Estava sonhando intensamente, esta manhã. No sonho, sofreria uma cirurgia, e me preparavam cuidadosamente. O propósito era retirar alguma coisa da minha cabeça. Não sei o quê, mas o sonho sabia.
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Como em todas as cirurgias de minha vida, estava calmo. Calmo… digamos, o suficiente. O ambiente de um centro cirúrgico é asperamente ascético, quase sem humanidade. E é essa característica que torna nossa calma de pacientes efêmera. Tudo é de aço, vidro, as máscaras tornam as fisionomias invisíveis, mas está tudo iluminado com num set de filmagem. Ah, isso garante tudo – a luz faz a eficiência das coisas… E tudo cheira a uma pureza que incomoda.
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A única humanidade, ali, é a minha. Eu, prestes a me entregar à ação das pessoas no meu corpo, alijado de minha própria participação, pela bênção invasiva da anestesia, aproximava-me daquele momento em que a tensão começa a se insinuar, irremediavelmente.
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Todos na sala cirúrgica são muito simpáticos. Assuntos frugais se entremeiam com curtas observações técnicas que os profissionais trocam entre si, enquanto tentam acalmar o paciente com algumas piadas. Preparam os instrumentos e os equipamentos de controle com velocidade que começa a incomodar. Fazem o asseio dos objetos, e do meu corpo, que parece estar ali presente apenas acidentalmente. É quase um balé – cheio de significados, mas são apenas corpos dançando…
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Como é praxe, e de grande astúcia, nessa troca vertiginosa de temas dos diálogos, eles já iniciam a administração do anestésico. Foi aí que minha tensão cresceu: lembrei que não havia feito uma oração! Imediatamente, me distanciei do ambiente, e comecei a rezar. É importante lembrar que isso era um sonho, mas eu não tinha certeza se iria de fato acordar, ou se o sonho, mais adiante, se consolidaria como uma desagradável, e talvez desesperada, realidade. Como poderia saber? Conforme avançava na sequência das orações – o “Pai Nosso que estais no céu…” – o anestésico iniciava seu efeito, e o meu distanciamento da cena cirúrgica começava, sob efeito da droga.
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A oração me acalmava, mas talvez estivesse entrando no percurso do despertar – “livrai-nos de todos os males…”. Eram vários roteiros potentes que se desenvolviam simultaneamente, numa conjuntura de alta tensão, se transformando em algo místico, com aquela sensação nova, mais pacífica, do acordar… A cirurgia, o anestésico me deixando inconsciente, uma sensação paralela parecida à paz do despertar, em que reconhecemos o sonho como impostor, a oração apressada e irredutível, tudo se misturava impiedosamente, na minha cabeça, que seria violada por uma broca.
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Sim, talvez estivesse acordando… do sonho! O anestésico já quase tinha substituído visualmente o ambiente hospitalar por aquele fogue pálido que antecede a perda dos sentidos, mas não era apenas a completa ausência de si mesmo que se impunha, mas uma consciência tênue do pré-despertar começava a tomar as rédeas da emoção subserviente do sonho, que nos domina impotentes na sensação emocional que torna o onírico real, mas que sempre evolui na advertência de que aquilo possa ser mesmo apenas uma projeção irreal… “sejamos sempre livres do pecado, e protegidos de todos os perigos…”.
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A oração prosseguia… quase como uma tábua de salvação, diante de um paralelismo, arrebatador, de duas realidades sensoriais opostas, diametralmente opostas: a inconsciência invasiva da anestesia, e o despertar plácido e restaurador do acordar.
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Parte do novo controle, que se formata na mesma desenvoltura suave do despertar, me mostra que estou deitado, entrando em processo de anestesiamento, atordoado por um risco impossível de lidar, pois estou sendo apagado literalmente – aquela sensação clássica da saída do sono, em que passamos a assistir de maneira não envolvida o sonho que está prestes a seu epilogo – e o testemunhamos em todos os seus detalhes, mas, univocamente, nas três funções pessoais da existência: o ser, o personagem, e o espectador – a santíssima trindade. E estou rezando – “…protegidos de todos os perigos…”.
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Eram então de fato a oração e seus significados os únicos elementos ali que se mantinham sem alteração. Não há dúvidas naquele texto mântrico, como há na sensação vagarosa de despertar, se opondo à emoção desesperadora da anestesia – esta totalmente adversa e lúgubre.
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Começo a tomar as rédeas do meu corpo… há uma leve sensação da pele nos lençóis, um silêncio familiar, doméstico, que poderia ser do meu quarto – diferente daquele da sala ruidosa do hospital… mas a urgência da oração na cirurgia me impele a um compromisso: não posso parar de rezar! Luto para que não fique inconsciente, no hospital, antes de concluir a oração. O acordar não está completo – caso esta seja a realidade final.
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Há uma sensação fugidia, ainda, de qual seja o rumo verdadeiro dos fatos. Pode ser que a situação perigosa da cirurgia retorne, então preciso continuar a orar. Qual é a realidade, afinal? “Ave Maria cheia de graça”, partes do meu corpo começam a se movimentar quase sozinhas, sim, não estou sendo desligado pelo anestésico, não, o que acontece comigo é que estou despertando!
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“Rogai por nós pecadores, agora e na hora de nossa morte…”. Completo a oração no mesmo instante em que o anestésico completa o seu efeito. E, no mesmo momento em que o anestésico me apaga completamente… eu – totalmente – me desperto. Plenamente!
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Foi como trocar a morte, sugerida pelo processo anestésico, por um abrir de olhos… Minha cabeça não seria mais penetrada por uma broca!
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E a oração foi o sexto sentido. O único, mantido confiável e alerta, enquanto duas realidades antagônicas – perder a consciência de forma invasiva, e recobrar a consciência num despertar natural e tranquilo – se entremearam como se tivessem me confinado dentro de uma ampulheta, sem nenhum controle dos outros cinco sentidos. E eu despertei…
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O vizinho usava repetidamente uma furadeira na parede…
…na manhã de 4 de fevereiro.
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. Sidney Giovenazzi é músico em São Paulo. Imagem – Marc Chagall, The Dream
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