Cidade Nova, fotografia de Ediane Hirle
. Nosso território está localizado na zona norte de Foz do Iguaçu, entrincheirado pelas torres de energia que vai de Itaipu a Furnas e divide a comunidade ao meio. Por toda a extensão do linhão podemos observar os corpos energizados de famílias fortemente armadas com suas enxadas cultivando roças de mandioca, milho, quiabo, feijão andu, amendoim e batata doce. Nos quintais das casas, pequenas hortas com hortaliças, temperos e ervas medicinais, regadas à mangueira ou regadores de mão e jardins floridos atraindo borboletas, abelhas e beija-flores. Num pequeno passeio, quem for bom de olfato vai identificar o cheiro de coentro, salsinha, cominho, tempero baiano, colorau e da mistura de sabores e saberes desse povo oriundo de várias cidades. Bairro de manhãs sonolentas e fins de tarde eternos, de um pôr-do-sol que se desmancha no horizonte e sinfonia de pássaros, muitas vezes aparentando uma cidade pacata, congelada no tempo, com seus cavalos puxando carroças de papelão, galinhas soltas pelos canteiros perseguidas por cachorros serelepes acompanhados pelos olhares das crianças que vendem latinha para comprar sorvetes e doces depois da escola.
É aqui onde as crianças ressignificam e reinventam seus territórios, pilotando bicicletas e carrinhos de rolimã por sobre o asfalto quente que se derrete em piche e pixo, marcando ferraduras de cavalos a caminho da roça, onde descansam os olhos na sombra dos abacateiros. Cientistas inventores de mundos paralelos, onde a bolinha de gude é a moeda social. É comum amanhecerem o domingo lavando suas bolitas, para depois sujarem novamente nos descampados de terra cor de urucum, arriscando tudo na bolsa de valores dos jogos de mil regras, onde as pequenas bolinhas são como planetas a serem conquistados. É incrível como aquelas bolinhas tão pequenas podem causar uma alegria tão grande, e é ali no campo de batalha épico onde se cria os laços afetivos, de companheirismo e coletividade.
Nas tardes de sol, as sombras convidam para um tererê, um chimarrão, um cafezinho e uma boa conversa entre vizinhos e visitas. Na frente das casas os adolescentes se reúnem com suas caixas de som portáteis turbinadas com seus pen-drives ao som do funk, pop latino, sertanejo, rap, música eletrônica, hits dos anos 60, 70 e 80, com copos gigantes de bebidas coloridas e celulares no coldre. Nas esquinas, a molecada se agrupa para fazer som de bateria com a boca onde inventam versos para tramar suas batalhas de rima e se aventuram em shows de talentos nos domingos ensolarados do Espaço Arapy e da Biblioteca Comunitária do CNI. Na ginga da capoeira ao som do berimbau, pandeiro e caxixi, lançam seus golpes de benção, meia lua, martelo, como besouros voadores exercitando corpo e mente, cultivando o respeito mútuo e levando a cultura adiante. Pés no chão e pensamento livre, voando no ar como vaga-lumes iluminando a noite.
A qualquer momento pode passar pelas ruas de paralelepípedo um carro de som divulgando o culto, disputando espaço com as propagandas de supermercado, troca-se sorvete por extintor velho de carro, churros na porta de casa e vende-se cartela de ovos com 30 unidades. Vez ou outra o céu é cortado em cicatrizes por aviões com seus rasantes e torrentes sonoras divulgando o circo que pousou no centro da cidade, com seus espetáculos acrobáticos e roda-gigantes do tamanho do mundo, caraminholando a cabeça dos moradores. Nas copas das árvores podemos ver a galerinha enchendo o bornal de frutas de várias espécies. Ceriguela, ameixa, manga, goiaba, acerola, pitanga, ariticum, amora, ingá, abacate, jaca, e jabuticaba que não se acaba, faz a felicidade das criaturas criativas de sorriso largo e braços sempre abertos a abraços. Sobem em árvores como quem escala um Everest, fincando suas bandeiras, demarcando seus territórios e construindo a memória coletiva.
Em dias de intenso calor, pegam trilha até o riozinho para banhar-se nas águas represadas com pedras e caetés e pescar com suas varinhas de bambu: pequenos lambaris, tilápias, mussuns, morenitas, bagres e traíras, que encherão as frigideiras para os petiscos de fim de tarde. No campinho improvisado, o sol rola macio pelo gramado, para felicidade dos quixotes de quixute, que dão dribles na realidade e enfrentam os dragões do time adversário, margeados pelos grafites que ocupam os muros.
Mãos sujas de terra, semeando girassóis, chamando chuva, plantando, colhendo, com a naturalidade de quem vive o hoje como se houvesse amanhã. Bordadoras e bordadores do cotidiano, guardiões das sementes, portadores da resistência, hospedeiros da criatividade, do amor e da alegria. Empunham livros como armas nas rodas de leitura e contação de histórias, onde a liberdade é verbo de ação. E, sobretudo, substantivo feminino, onde o giz faz o asfalto gritar alto: “RESPEITA AS MINAS”.
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