Os tambores do candombe foram proibidos de serem tocados durante a ditadura militar uruguaia (1973-1985) – Pablo Porciuncula / AFP
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Rua Isla de Flores, bairros Sur e Palermo, Montevidéu. As pessoas se amontoam nas calçadas e varandas das casas antigas da capital uruguaia. Observam, dançam, gritam e saúdam o cortejo que passa no meio. São as llamadas: os desfiles das comparsas, como são nomeadas as agrupações de candombe.
Na frente, bandeirões enormes são agitados. Em seguida, vêm os personagens míticos: o escobero abre os caminhos com seu bastão; as mama viejas e os gramilleros – elas de vestido e leque, eles com bengalas e barbas brancas – representam a sabedoria dos mais velhos. Atrás deles, símbolos como estrelas, meia luas ou máscaras são carregados, seguidos pelo corpo de baile. A vedette, similar à nossa rainha de bateria, dança pertinho da onde o batuque que a embala é produzido.
E então vêm os tambores. Se ainda não tinham sido vistos, já se escutavam a quilômetros. A cuerda é composta por fileiras com dezenas de três tipos de tambores (do agudo ao grave): o chico, o repique e o piano. Com o couro afinado pelo calor das fogueiras, os tambores são tocados pela mão de um lado e a baqueta de outro.
As llamadas, que acontecem no dia de Reis (6 de janeiro) e no carnaval, são a expressão mais visível do candombe. Mas se engana quem acredita que essa manifestação cultural afrouruguaia se resume aos desfiles ou às competições.
Mama vieja e gramillero dançam juntos no cortejo de carnaval / Pablo Porciuncula / AFP
Na contramão do que poderia se entender como uma identidade nacional folclórica, o candombe carrega forte caráter político e fundamentos ligados às suas raízes africanas, em um país que ainda insiste em se apresentar e ser visto como branco.
Hegemonicamente manuseados por homens, os tambores vêm, nas últimas décadas e cada vez mais, sendo tocados por mulheres. Exemplo disso é o primeiro encontro uruguaio de mulheres e sexualidades dissidentes do candombe, marcado para abril de 2022, em Durazno.
. Isabel “Chabela” Ramírez tinha 20 anos em 3 de dezembro de 1978. Já militava desde os 15 no movimento negro, mas não sabia ainda que se tornaria uma das mais importantes referências feministas e antirracistas do candombe.
Nasceu, cresceu e vive até hoje em Palermo, bairro que, como Cordón e Barrio Sur, é historicamente ligado às comunidades afrouruguaias.
Ali se ergueram os conventillos, grandes cortiços onde moravam muitas famílias negras: o epicentro do candombe. Não à toa, os três estilos de toque levam o nome dos lugares onde foram criados: ansina, na região de Palermo; cuareim, no conventillo Medio Mundo e cordón, no conventillo Gaboto.
Foi durante a ditadura militar uruguaia (1973-1985), período em que o toque dos tambores estava proibido, que se pôs em prática o processo gentrificador de despejo dos cortiços. O 3 de dezembro é dia nacional do candombe por fazer referência à última vez em que, em resistência, os tambores soaram no célebre conventillo Medio Mundo em 1978. No dia seguinte todas as famílias foram removidas à força.
Em janeiro de 1979 o mesmo aconteceu na região de Ansina. Chabela assistiu, de cima de uma varanda com um amigo, seus vizinhos serem levados para regiões periféricas que ela caracteriza como “campos de concentração”.
“O poder se impunha de forma totalmente vertical. Sentimos que não podíamos fazer outra coisa além de gritar. Choramos e xingamos a tarde inteira”, conta a cantora, compositora, candombera e ativista.
“Foi dramático tanto para os que se foram quanto para nós que ficamos. Passar todos dias na esquina e ver como crescia a grama ali, saíam as folhas pelas janelas das casas, que não foram usadas para nada”, relata: “Pah… assim passaram 20 anos”.
Grafites e pinturas se espalham pelos muros dos bairros historicamente ligados às comunidades afrouruguaias / Gabriela Moncau
Chabela Ramírez abre um sorriso ao ser perguntada como o candombe resistiu a esse processo. “Uma coisa é o candombe como forma de vida comunitária, como se vivia aqui e em cada família negra ou mestiça que habitava os bairros pobres de Montevidéu”, explica. “E outra coisa é o exercício mesmo do candombe tocado”.
Esse segundo não só não foi desarticulado, como se multiplicou. A dispersão de famílias candomberas por outras regiões da capital e do país espalhou o ritmo como se espalham sementes.
“O candombe como forma, e como música também, tem uma estrutura. Que foi dada por nossos antepassados durante a escravidão. Os tambores são as vozes das pessoas”, descreve Ramírez, que atualmente é presidenta da Casa de Cultura Afrouruguaia, localizada na histórica esquina das ruas Isla de Flores e Ansina.
“Aqui, como aconteceu em toda a América, as pessoas tiveram arrancados seus nomes, sua origem, sua religiosidade africana. E também perderam a possibilidade de conversar entre elas. Por isso a importância dos tambores”, completa.
No artigo “A gramática do tambor”, o historiador Luiz Antônio Simas argumenta – ao exemplificar como escolas de samba citavam personagens europeus nas letras enquanto louvavam os orixás nas batidas das baterias – como “ao longo da história das culturas da diáspora africana no Brasil, os tambores muitas vezes contaram o que a palavra não podia dizer”.
“O candombe é forma de comunicação”, sintetiza Chabela Ramírez, que lançou em 2016 o álbum De tambores y amores. “Teria que ser também forma de comunhão. Mas não é”, critica.
O termo vem do quimbundo, uma das línguas dos povos bantus, e se referia genericamente a danças praticadas pelas populações negras na América Latina. Com o tempo se consolidou como referente a esse ritmo específico, que surgiu de forma ritualística em Montevidéu no século 18, tocado junto aos muros que circundavam o que é hoje a cidade velha.
Ao longo do século 19 as batucadas passaram a acontecer aos domingos nas Salas de Nações: associações africanas de ajuda mútua, organização e práticas ritualísticas. Elas dariam origem, a partir do século seguinte, às comparsas. Atualmente, nos finais de semana ao longo de todo o ano as batucadas acontecem nas ruas para encontros, ensaios e manifestações.
Victoria Bonanata, mais conhecida como Vito, caminhava pelo centro de Montevidéu certo dia do ano de 1994. Aos 17 anos, intuía o que queria, mas não tinha certeza se dava. Nesse dia teve. Viu, pela primeira vez, uma mulher tocando tambor. “Ela estava na frente da prefeitura, rodeada de crianças. Me impactou profundamente”, diz. Era Chabela Ramírez.
“Ter referências é muito importante. Até que você veja alguém fazendo, não está no seu imaginário que você também pode fazer. Parece tonto, mas não é nada óbvio”, avalia Bonanata.
“Eu tinha vontade de aprender mas não sabia onde. Não tinha internet e se você ia até uma comparsa só se viam homens”, expõe. Um tempo depois, Vito estava num ônibus e viu uma mulher com uma mochila de onde despontavam duas baquetas. Tomou coragem e a abordou. “Você pode me ensinar?”
Anos depois, em 2005, a moça do ônibus, que se chama Ana Claudia de León, Vito Bonanata, Fernanda Bertola e várias outras percussionistas (algumas integravam o grupo musical Las Comadres) tiveram uma ideia que seria um divisor de águas na história recente do candombe.
“Sabíamos de mulheres que estavam tocando por aí em grupos ou em comparsas onde eram quase todos homens. E começamos a pensar que bom seria se a gente se juntasse, fizesse algo para o 8 de março”, relembra Fernanda. A convocatória se espalhou, fizeram três ensaios, um mais cheio que o outro. Quando chegou o dia do ato, eram 88 tambores.
La Melaza completa 16 anos em 8 de março de 2022 / Arquivo – La Melaza
Assim surgiu o coletivo horizontal La Melaza, a primeira grande comparsa composta integralmente por mulheres e sexualidades dissidentes. Prestes a completar 16 anos, o grupo tem atualmente cerca de 40 integrantes. O nome é inspirado na canção “Caras lindas”, interpretada pela peruana Susana Baca: “Las caras lindas de mi gente negra / Son un desfile de melaza en flor”.
“Se criou a partir de uma necessidade. Vivemos essa constante luta de ter que demonstrar que podemos, sendo mulheres. E quando nos juntamos, uau, foi uma coisa super poderosa. Sim, podemos, e como soa forte quando nos juntamos”, afirma Bertola.
“A sensação de tocar é entrar num estado em que você sente que algo te leva, é um estado puro de vibração com a música, a ponto de te emocionar às vezes”, descreve. “Muito forte o que o tambor pode gerar. Tem um pulso, é o coração que bate. E que fala”, diz Fernanda, para quem a crescente presença de mulheres nesses espaços só é possível graças aos caminhos abertos pelas gerações mais velhas.
A primeira vez que o Teatro de Verão – que sedia as competições carnavalescas em Montevidéu – teve o palco ocupado por mulheres tocando tambor foi em 1989. Eram quatro. E Chabela era uma. Em 1995 ela criou o grupo de coro e dança de mulheres Afrogama, que segue atuante até hoje.
“Fato é que as mulheres sabiam tocar. Mas não havia muitas que tocavam na rua. As que nos estimularam a tocar foram outras mulheres mais velhas daqui de Ansina”, conta Ramírez: “O que nós queríamos era contar nossas próprias histórias e tocar nós mesmas”.
Chabela Ramírez atua desde 1995 no Afrogama, grupo de coro e dança de mulheres e preside a Casa da Cultura Afrouruguaia / Arquivo – Afrogama
“Nós teríamos que estar todos na mesma luta. Mas o candombe, nesse crescimento quantitativo que teve, muitos dos donos de comparsas não têm a menor ideia nem de origens, nem de aspectos socioculturais, nem nada. Gostam de tocar, de ganhar um prêmio, de sair e se sentir poderoso no meio da rua”, analisa Chabela. “E creem que o candombe é alegria. Por isso creio que há um grave equívoco conceitual”, aponta.
“Porque o candombe é espiritualidade. Se traduz como expressão de alegria ou de satisfação, se poderia dizer, mas ele não nasceu para divertir ninguém. Simples e profundamente é uma expressão cultural dos povos escravizados aqui no Rio da Prata. E que o povo tomou como bandeira para unidade”, resume Chabela Ramírez: “O candombe é luta”.
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