Teatro Experimental do Negro ensaiando Sortilégio, com Abdias Nascimento e Léa Garcia, 1957 – Fotomontagem: Jornal da USP – Imagens: Arquivo Nacional/Domínio Público e Arquivo Agência Brasil/Wikipedia
Em 1791, uma performance ritual que ficou conhecida como Bois Caiman deflagrou uma revolução no Haiti. Durante a cerimônia política e religiosa, escravizados sacrificaram um porco a divindades vodu em meio a música e dança, marcando o início de uma grande investida dos escravos contra os senhores, que culminou na abolição da escravidão e na formação de uma república negra no País.
Essa não foi a última vez – nem a primeira – que a cultura negra articulou grandes mudanças na sociedade. A arte, em especial o teatro negro, sofreu transformações estéticas e técnicas nas últimas décadas e permanece uma ferramenta de resistência política, apesar da marginalização que perdura até hoje.
A atuação dos teatros negros no Brasil é tema do artigo Quando a Cultura é Política: Teatros Negros e Políticas Culturais no final do século 20 e início do século 21, disponível no Portal de Revistas da USP. Escrito por Terra Johari Terra, doutoranda em Antropologia Social pela USP e analista de políticas públicas na Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, o texto aborda a reconfiguração dos teatros negros brasileiros no período entre 1970 e 2000, com foco nos contextos de São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador.
Teatro Experimental do Negro. fotografia do Correio da Manhã – Imagem: Domínio Público
Até 1944, a participação de negros no teatro se restringia a brancos que se pintavam e, quando o elenco incluía atores afro-brasileiros, eles recebiam papéis estereotipados, secundários e frequentemente pejorativos. Buscando valorizar a herança cultural afro-brasileira, garantir o protagonismo negro e combater o preconceito racial, o economista e ator Abdias do Nascimento fundou o Teatro Experimental do Negro (TEN), grupo carioca que atuou entre 1944 e 1961.
Inicialmente, o corpo de atores era formado por operários, empregados domésticos, moradores de favelas e modestos funcionários públicos e, além de ensinar interpretação teatral, o TEN também oferecia cursos de alfabetização, cultura geral e formação política para os atores. A educação era um pilar essencial, já que a atuação do grupo não se restringia aos palcos: o TEN também organizou movimentos sociais, como o Comitê Democrático Afro-Brasileiro e a Convenção Nacional do Negro, que defendeu a inclusão da discriminação racial como crime de lesa-pátria na Constituinte de 1946.
Durante os anos de 1970, os teatros negros adotaram um viés mais informal, buscando se aproximar da população por meio da performance. Com criações coletivas e grande número de atores em cena, o teatro afro-brasileiro da época fazia oposição à ditadura militar, denunciando o racismo na sociedade brasileira e criticando a concepção de democracia racial difundida pelo governo na época. A denúncia não passou despercebida pelos militares. Durante o regime, os grupos de teatro foram duramente censurados e sofreram diversos tipos de perseguição. Mesmo atacado pelo governo, o teatro negro persistiu: a década de 1970 foi marcada por uma proliferação de grupos amadores de teatro por todo o Brasil.
Com o tempo, o teatro negro ganhou mais relevância nacional e inspirou iniciativas fora do eixo Rio-São Paulo. Em Salvador, a criação do Teatro Negro da Bahia (Tenha), em 1969, deu o pontapé inicial, em um contexto de reafirmação da identidade e cultura negras.
O diferencial do teatro baiano é sua intersecção com os blocos afro, criados no final dos anos 1960, que passaram a participar das atividades teatrais. Essa aproximação fez com que a maioria dos blocos se profissionalizassem para a performance teatral, como o Bando de Teatro Olodum, criado em 1990. Além de pautar o combate ao racismo, o bando também se preocupava em retratar as questões cotidianas do povo baiano. Temas como religião, violência, racismo, turismo sexual e festas contracenavam com o movimento. De forma humorística e sarcástica, misturavam música e dança em performances que captavam o universo da rua e seus personagens — baianas, moleques de rua e prostitutas — eram frequentemente evocados nas apresentações.
A marginalização dos teatros negros não ficou no passado. As últimas décadas evidenciaram avanços conquistados pelo movimento negro, das quais Terra destaca a inclusão de cotas raciais no ensino superior, que contribuiu para o aumento de afro-brasileiros nos cursos de artes cênicas e para a proliferação dos teatros negros. Entretanto, a autora ainda aponta ferramentas de exclusão presentes nos dias de hoje.
Terra Johari Possa Terra – Foto: Arquivo pessoal
Segundo Terra, os grupos independentes são alvos de desigualdade na distribuição de recursos de leis do incentivo à cultura, que exigem conhecimento específico acerca dos mecanismos dos editais para a inscrição de projetos, saber pouco difundido no teatro negro. O patrocínio — ou melhor, a falta dele — é outro critério que aumenta a assimetria entre o teatro hegemônico e o teatro negro. As companhias de teatro negro geralmente dão visibilidade às lutas e reivindicações políticas dessa população, o que dificulta a obtenção de patrocínios, já que os empresários evitam associar suas marcas ao engajamento político. Com falta de recursos financeiros, grupos de teatro negro geralmente ocupam espaços improvisados e não conseguem uma sede fixa.
“Afinal, se mesmo nos tempos da escravidão os povos africanos cultivaram a vida, suas linhagens que alçaram novos espaços a partir de suas lutas não irão morrer agora”, finaliza Terra no artigo.
O Portal de Revistas da USP é a biblioteca digital das revistas publicadas por Unidades e Órgãos da USP. Criado em 2008, o portal oferece conteúdos produzidos pela Universidade gratuitamente, democratizando o acesso ao conhecimento acadêmico.
Quando a Cultura é Política: Teatros Negros e Políticas Culturais no final do século 20 e início do século 21. – Revista de Antropologia, disponível no Portal de Revistas da USP
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