A ocupação da Fazenda Annoni, ocorrida na noite de 29 de outubro de 1985, é amplamente reconhecida como um marco histórico na luta pela terra no RS e na fundação do MST – Foto: Eduardo Vieira da Cunha – Foto: Eduardo Vieira da Cunha
Em 1985, o cansaço e a indignação levaram 1,5 mil famílias sem terra a ocupar a Fazenda Annoni, no norte do Rio Grande do Sul. Classificada como latifúndio improdutivo, a área havia sido prometida pelo governo federal para assentamento rural, mas durante 14 anos as promessas se perderam em papéis e disputas judiciais. As famílias transformaram o descaso em mobilização.
“A gente morava de agregado, tinha que dar a maior parte do que colhia pro patrão. Chegava o fim da safra e a gente não tinha nada”, recorda uma das agricultoras no documentário Terra para Rose, de Tetê Moraes.
Tetê Moraes e os filhos de Rose, Vanisa da Silva Raber e Marcos Tiaraju em Porto Alegre – Foto: Rafa Dotti
O filme está entre os títulos que integram a mostra Cinema da Terra, 40 anos da Ocupação da Fazenda Annoni, que celebra as quatro décadas da ocupação, junto da exposição 40 anos da Fazenda Annoni e a Luta pela Terra – o olhar de Eduardo Vieira da Cunha ─ organizada pelo MST e aberta no dia 22, no Sindicato dos Bancários de Porto Alegre (SindBancários), em uma parceria com o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e o jornal Brasil de Fato RS.
Narrado pela atriz e ativista Lucélia Santos, Terra para Rose expõe a desigualdade no campo brasileiro. Dos quase cinco milhões de proprietários rurais, apenas 170 mil detinham quase metade das terras agrícolas do país, responsáveis por apenas 16% da produção agropecuária. Enquanto isso, cerca de 12 milhões de famílias sem terra viviam sem acesso à terra para cultivar e sobreviver. “Foram assassinados mais de mil camponeses, nos últimos 20 anos. Entre 1970 e 80, 24 milhões de brasileiros migraram do campo para as cidades”, narra Santos no documentário.
Com a redemocratização, o Brasil renascia sob o signo das esperanças e promessas. Após a eleição de Tancredo Neves e a posse de José Sarney, o governo federal anunciou medidas voltadas à redistribuição de terras. Sarney assinou o decreto que criou o Ministério do Desenvolvimento e Reforma Agrária, e o então ministro Nelson Ribeiro estimou que seriam necessários dez anos para acabar com os latifúndios no país.
Em agosto de 1987, quando se fechou o filme Terra para Rose, das 1,5 mil famílias acampadas na fazenda ocupada, somente 170 foram assentadas em quatro fazendas da região do Rio Grande do Sul, sendo que 1,2 mil ainda continuavam ocupando a Fazendo Annoni. Até agosto deste ano, o RS contava com 195 assentamentos federais, atendendo aproximadamente 8,5 mil famílias.
Tetê Moraes e os filhos de Rose debatem o filme, em Porto Alegre, RS – Foto: Rafa Dotti
A sessão inaugural no CineBancários reuniu movimentos sociais e simpatizantes, e contou com a presença da diretora Tetê Moraes, do fotógrafo Cezar Moraes e dos filhos de Rose (Roseli Seleste Nunes da Silva), Vanisa da Silva Raber e Marcos Tiaraju ─ a primeira criança nascida durante a ocupação.
Nesta quinta e sexta-feira (23 e 24), às 15h, serão exibidos os outros dois filmes da chamada “Trilogia da Terra”: Sonho de Rose e O Fruto da Terra. Além dos filhos Tiaraju e Raber, Rose teve Paulo Roberto da Silva, que tem uma revenda de automóveis e também desenvolve trabalho com as famílias em situação de vulnerabilidade.
As comemorações dos 40 anos da ocupação da Fazenda Annona seguem também, nos dias 24 e 25 de outubro, no Assentamento 16 de Março, em Pontão (RS), com atividades culturais e políticas que reafirmam a luta por reforma agrária e justiça social.
Em fala durante o evento, a cineasta Tetê Moraes relembrou como nasceu o documentário Terra para Rose, filmado durante a marcha e o acampamento dos sem terra na Fazenda Annoni, em 1985. “Na época, eu tinha um projeto chamado Elas na Luta pela Terra Prometida, sobre mulheres e terra no Nordeste. Mas quando vi nos jornais aquelas fotos da Annoni, com os barracos de lona e aquele acampamento imenso, percebi que era ali que a história estava acontecendo. Nunca tinha visto algo assim no Brasil”, contou.
Tetê decidiu viajar imediatamente ao Rio Grande do Sul com uma pequena equipe. “Documentário é sempre um desafio, com poucos recursos, mas uma urgência enorme. Eu fui para lá à noite, conhecer as pessoas e o acampamento. Fui bem recebida. Logo comecei a filmar, com uma equipe mínima.”
A diretora recordou que o primeiro registro aconteceu durante a marcha para Porto Alegre, iniciada em São Leopoldo. “Chegamos de Kombi, e eles estavam atravessando a ponte, com aquele pôr do sol maravilhoso. Eu pedi que atravessassem de novo, para filmar. Eles aceitaram. Foi o nosso primeiro contato de filmagem. Desde o início, houve uma relação muito franca, de confiança e colaboração.”
“O documentário tem isso: você está filmando algo que ainda está acontecendo, sem saber onde vai parar. Filmamos até o momento em que conquistaram a terra”, destaca Tetê – Foto: Rafa Dotti
Filmagens sob tensão e solidariedade
Tetê relatou que o documentário foi gravado em várias etapas, acompanhando o cotidiano dos acampamentos e os momentos de maior tensão com a Brigada Militar. “Eles me ligaram de um orelhão dizendo que o acampamento seria cercado. Eu voltei às pressas. Quando chegamos, estava tudo rodeado pela polícia. Eu fui falar com o comandante e disse que éramos da TVE, que estávamos fazendo uma reportagem. Acabaram deixando a gente entrar. As câmeras davam segurança para os acampados, porque sabiam que, se tivesse registro, era mais difícil haver violência.”
As filmagens acompanharam a marcha, os acampamentos em Porto Alegre – na Assembleia Legislativa e no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) – e o cotidiano das famílias. Foi ali que surgiram personagens centrais como Rose, Serli, Zé, Darcy e Isaías. “O filme foi crescendo. Começou pequeno e virou um longa. Foram pelo menos quatro viagens de filmagem, além de Brasília, onde registramos momentos da Assembleia Constituinte. Tudo com muito esforço e improviso”, lembrou.
Tetê destacou que o filme foi sendo construído ao longo do processo, sem roteiro fixo. “Ninguém sabia o que ia ser. Eu fui sendo empurrada pela própria história. O documentário tem isso: você está filmando algo que ainda está acontecendo, sem saber onde vai parar. Filmamos até o momento em que conquistaram a terra. Ali deu para colocar um ponto final, pelo menos naquele parágrafo da história.”
A diretora lembrou que Terra para Rose foi filmado em 16 milímetros, exigindo sincronização manual entre som e imagem. “Era tudo muito mais complexo do que hoje. E eu era também a produtora, buscando recursos e formas de continuar.”
Roseli Seleste Nunes da Silva e seu filho Marcos Tiaraju em marcha a Porto Alegre – Foto: Divulgação MST
“Foi um tema que não acabava. Eu não sabia onde ia dar, podia até terminar em tragédia, como terminou para Rose e outros companheiros. Mas eu precisava continuar filmando. Era uma história de seres humanos lutando por um pedaço de terra.” Tetê contou que dez anos depois voltou aos personagens para filmar Sonho de Rose, que dá continuidade à trajetória das famílias assentadas.
A diretora também celebrou o espaço do SindBancários, que mantém o CineBancários como sala pública de cinema. “É muito importante um sindicato ter essa sensibilidade com a arte, o cinema documentário e as causas sociais. Fico muito feliz de ver essa sala acolhedora exibindo filmes que contam a história da luta pela terra e do nosso país.”
Durante o debate, o fotógrafo e cineasta Cezar Moraes destacou a importância da qualificação técnica das equipes que atuam no cinema, especialmente em produções documentais que registram momentos históricos e movimentos sociais.
“Sou totalmente consciente do que aconteceu e do que vai continuar acontecendo, isso é muito importante”, afirmou Moraes. Ele aproveitou para prestar homenagem aos fotógrafos Walter Carvalho e Fernando Duarte, responsáveis pela câmera e fotografia do primeiro filme da série, Terra para Rose.
Segundo ele, a experiência com negativos exigia precisão e profissionais preparados. “Vocês imaginam os rolos de filme sendo rodados no meio daqueles acontecimentos e depois o laboratório ligar dizendo que nada foi impresso, que estava tudo fora de foco. Se você não tem mão de obra capacitada ao seu lado, não consegue realizar muita coisa”, observou.
O cineasta ressaltou que a formação técnica continua essencial mesmo na era digital, apesar da impressão das novas tecnologias facilitarem o processo. “As opções são tantas, o menu da câmera é tão grande, que quando você aprende um, já sai outro modelo. A atualização e a capacitação dos profissionais são diárias. Se você escolheu fazer fotografia, estude isso, porque vai auxiliar decisivamente no filme”, completou.
Moraes lembrou ainda dos profissionais que já partiram, como o fotógrafo Fernando Duarte, e destacou que muitos “seguem orientando de outro lugar”.
A diretora Tetê complementou a reflexão lembrando que o cinema documental exige preparo e abertura ao imprevisível. “A gente tenta estar minimamente preparado para filmar, para registrar e ver o que dá para fazer, o que dá para sair disso tudo. Essa é a dificuldade e também a beleza do documentário. Muitas vezes você não sabe onde vai parar. Quando se trata de acompanhar movimentos sociais, geralmente nunca se sabe o que exatamente vai acontecer.”
Para o médico Marcos Tiaraju, filho de Rose, o contexto em que surge o MST está profundamente ligado ao momento político do país. “Lógico que com o passar do tempo a gente vai ouvindo as histórias, mesmo pelas imagens dos filmes e depois com a companheirada em outros acampamentos, marchas e manifestações. A gente vai ouvindo e assimilando aquilo que a memória não permite lembrar, porque éramos muito pequenos”, contou.
Ele lembra que o acampamento da Annoni ocorreu no final da ditadura militar, num momento de redemocratização e de efervescência política. “Havia um espírito de mudança, de necessidade de guinada democrática. Diversos focos de luta se uniam, na cidade e no campo, porque havia um horizonte maior. Não era só a terra, era a democracia, era construir um novo país, uma nova sociedade.”
Segundo Tiaraju, boa parte da população ainda vivia no campo, composta por pequenos agricultores, arrendatários e meeiros. “O que esse povo sabia fazer era trabalhar na terra. E os que estavam no acampamento e não podiam trabalhar dependiam da ajuda externa que ia chegando conforme era possível.”
Ele destaca a força da solidariedade que se criou em torno da luta. “As comunidades do interior se organizavam para enviar suprimentos. Havia artistas, religiosos, entidades urbanas. Figuras como Leonardo Boff, Frei Betto e o padre Arnildo (Fritzen) já ajudavam a organizar essa massa de trabalhadores. Naquele momento, o MST ainda não era o que viria a ser depois. Era um movimento de pobres agricultores que queriam construir um novo capítulo para a vida, e isso gerava uma onda de solidariedade imensa.”
O médico observa que, com o tempo, o movimento passou por um processo de criminalização. “A imprensa é quem cria a sigla MST, e depois outros movimentos também passam a se identificar com siglas. Mas aquele movimento inicial era o movimento dos trabalhadores rurais sem terra, que nascia muito guiado pela fé e pela igreja.”
Para Tiaraju, se o Estado soubesse o que o MST se tornaria, “a repressão teria sido maior”. Ainda assim, ele acredita que a rede de solidariedade foi essencial para que o movimento prosperasse. “Se tentassem sufocar pela fome, como vemos em Gaza hoje, talvez o desfecho fosse outro. Mas vários fatores se confluíram e permitiram que a história fosse diferente. O MST cresceu, amadureceu e hoje é o maior movimento social da América Latina e um dos maiores do mundo.”
Ele ressalta que o MST se tornou uma organização social com formação política contínua e atuação ampla. “Hoje, o movimento defende o meio ambiente, a redemocratização e é o maior produtor de arroz orgânico da América Latina. Nosso assentamento em Viamão (RS) é um dos grandes produtores, e esse arroz chega a países como Venezuela e até a Faixa de Gaza, num gesto simbólico de solidariedade para além das fronteiras.”
Por fim, Tiaraju pontua que a luta pela terra só sobrevive porque se conecta a um projeto maior de transformação da sociedade. “O MST amadureceu nesse entendimento. Continua sendo conduzido por essa utopia que nos faz seguir lutando. O movimento social é isso: é resistência, é solidariedade e é vida.”
Outra filha de Rose presente, a assistente social Vanisa da Silva Raber contou que as imagens e a força coletiva mostradas nos filmes inspiraram sua trajetória. “Essas imagens e essa força do coletivo me inspiraram a me formar assistente social. Teve muita dor, muito sofrimento. A mãe foi arrancada de uma hora pra outra e a gente teve que ser resiliente, contar com a força divina e com anjos, pessoas que cruzaram nosso caminho.”
Raber explica que o estudo foi também uma forma de compreender e continuar a luta da mãe. “Isso nos incentivou a buscar o conhecimento, para além da força do coletivo, da troca humana, buscar o conhecimento acadêmico para entender a realidade da qual a gente faz parte. Eu fui para o Serviço Social, que tem uma conexão direta com a defesa da semente que a mãe plantou: a busca por um projeto de sociedade mais igualitária, mais justa, com acesso para todos, independente de classe, religião ou cor.”
Ela afirma que a herança está no sangue. “Ver essas imagens e esses filmes dá força. Teve muita dor, mas também é um legado. A fruta não cai longe do pé. Mesmo que a gente não esteja militando diretamente com o MST, seguimos defendendo essa bandeira nos espaços que ocupamos, na área social, na medicina, na fé. De alguma forma, nós três carregamos isso no sangue.”
Raber completa com uma reflexão sobre humanidade e esperança: “Ser humano é tocar e ao mesmo tempo ser tocado. Isso me inspira a intervir na realidade, ainda dentro da lógica da esperança. Mesmo que sejamos utópicos, não podemos desistir. A luta se faz todo dia, e se faz através da força do coletivo.”
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