“Lima Barreto”, nanquim e grafite sobre papel. Desenho de Di Cavalcanti, 1952
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– Lima Barreto, olhe aqui o Di Cavalcante.
Foi assim que o Schettino me levou até o grande romancista do Triste Fim de Policarpo Quaresma.
Lima Barreto olhou-me com seus olhos mortos e um sorriso de mofa no canto dos lábios:
– Vi os seus Fantoches da Meia-noite, com o prefacinho do Ribeiro do Couto. Agradeço-lhe o exemplar que me deixou.
Estávamos sentados num cafezinho da rua Sachet. Eu me sentia um pouco contrafeito entre o livreiro e o escritor. Fiquei calado.
Foi Lima Barreto quem resolvera abrir-se a respeito do meu álbum de desenhos que Monteiro Lobato acabava de editar. Para ele, o Lobato demonstrara ter muita coragem, “porque no Brasil essas coisas de livros de luxo não dão resultado, aqui só vinga o futebol.”
Tinha raiva de futebol.
Schettino falou do prefácio de Ribeiro do Couto.
– Está bom o prefácio – disse Lima Barreto com certa secura.
Procurei desviar a conversa para outro assunto. Comecei a falar dos subúrbios cariocas, de meu desejo de fazer desenhos sobre a vida daqueles recantos tão pitorescos. E, através da evocação dos subúrbios , animou-se minha primeira conversa de botequim com Lima Barreto.
Os Fantoches da Meia-noite saíram em fins de 1921. Em fevereiro de 1922 realizou-se a Semana de Arte Moderna. Acredito que meu primeiro encontro com Lima Barreto data de meados de 1922. Foi também nessa época que conheci Capistrano de Abreu, por intermédio de Paulo Prado.
Ano extraordinário aquele, cheio de grandes aventuras! Abandonei São Paulo logo depois da Semana. (…)
Soldado na Vila Militar e morando em Botafogo, eu acordava de madrugada para chegar as seis horas no II Regimento. Era um inferno! E posso dizer, hoje, que era um inferno adorável.
Numa dessas minhas viagens para a Vila Militar, encontrei no trem Lima Barreto, que voltava para casa, cambaleante, sujo, cheirando a cachaça. Meus companheiros, reservistas como eu, olharam com desdém para aquele triste mulato e ficaram surpresos de ver que eu o acolhia com simpatia e mesmo com respeito.
– Quando chegar Engenho de Dentro, avise-me! – disse o boêmio espichando no banco e caindo num torpor barulhento, entre arrotos e uivos.
Queria saltar no Engenho de Dentro para continuar bebendo.
Estava no fim da vida o grande Lima Barreto. Muitas vezes conversei com ele na Livraria Schettino. O livreiro era o seu grande amigo.
Certa manhã, em minha companhia, Schettino abriu a pequenina loja da rua Sachet. E eu vi, espantado, emocionado, com estes olhos que sabem ver , o Lima Barreto emborcado sobre um montão de livros que ele atirara das estantes ao chão. Serviam-lhe de cama e estava roncando.
Schettino olhou com os olhos rasos de água. E eu confesso que, ao recordar aquela cena, me vem um nó na garganta.
O drama da vida de Lima Barreto sempre me comoveu profundamente. As inúmeras vezes que conversei com o grande romancista, não raro em companhia de Enéas Ferraz, Schettino, Agripino Griecco, pude observar que atrás daquele desleixo se escondia alguma coisa de muito puro, nobre, forte. Sua revolta era contra a sordidez e as aparências hipócritas da sociedade, não contra o homem. Para este, ele guardava todas as simpatias, dedicando aos humildes todo o seu amor.
Hoje, Lima Barreto esta ao lado dos nossos mestres do romance: Machado de Assis, Aluísio Azevedo, Manoel Antônio de Almeida. A nova geração sabe admira-lo. Seus livros são reeditados. Seu nome é lembrado sempre.
Teve um triste fim o grande Lima Barreto. Enéas Ferraz me telefonara.
– Você não vai ao enterro do Lima?
Subi a rua esburacada do subúrbio. Ele morava em Todos os Santos.
No porão da casa, o pai louco gritava. Chovia muito quando saímos com o caixão pesado escorregando de nossas mãos. O vagão mortuário levou-o da estação suburbana ate a Central.
Lembro-me da cara branca de adolescente afoito de Enéas Ferraz a olhar para o caixão do seu ídolo. E me lembro também de dois guardas-civis solenes, um deles irmão do morto, montando guarda ao corpo no vagão sacolejante.
Da Central, num carro de terceira classe, o corpo seguiu ate o cemitério São João Batista. Era pequeno o acompanhamento. No cemitério, entre os amigos humildes do morto, entre os que tinham a cara inchada pelo álcool e cortada pela insônia, vi alguns intelectuais. Felix Pacheco, Olegário Mariano, Agripino Griecco.
A chuva não parava. A terra caia, enlameada, sobre o caixão negro.
Nunca me esquecerei do grande Lima Barreto, que eu conheci já nos seus últimos anos de vida. Lembro-me dele com uma ternura imensa.
Como uma caricatura dolorosa, e como se eu o estivesse vendo, encostado a uma porta modesta de botequim, a sorrir para a imbecilidade anônima dos bem-confortados…
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