18 de maio é o Dia da Luta Antimanicomial. Repetimos: dia DA Luta pois não é o único dia DE luta na construção de uma sociedade sem manicômios. Fazemos isso o ano inteiro, seja quando refletimos sobre a barbaridade que essas instituições representaram na nossa história repleta de navios negreiros e casos de tortura, seja quando localizamos que as práticas manicomiais não se resumem às suas instituições. Mas é o dia em que essa Luta pode aparecer, e isso tem acontecido há mais de 30 anos no Brasil! A Luta Antimanicomial é um movimento atrelado à defesa intransigente dos Direitos Humanos. O Sistema Conselhos de Psicologia é sensível a esta questão, desde o primeiro ponto do Código de Ética Profissional. Não queremos uma sociedade manicomial porque os manicômios não servem para curar. Nunca serviram. Sua função sempre foi a exclusão de pessoas “indesejáveis” para as classes dominantes de cada época: A louca ou O louco, A histérica, O histérico, A viciada, O viciado, A mulher negra, O homem negro.
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É importante lembrar essa história: a história da exclusão e da internação, que é anterior à própria história das ciências “psi” (que é como chamamos a Psicologia, a Psicanálise, a Psiquiatria). Primeiro, no Renascimento, no século XV, vieram os “navios dos loucos”, nos quais as pessoas delirantes, desviantes ou “indesejáveis” eram lançadas ao mar. Não para encontrar a cura, não para atracar em algum lugar; sem destino, apenas para afastá-las dali. Eram excomungadas, no sentido de serem expulsas da vida comunitária e, com isso, devolvia-se a loucura, desconhecida e misteriosa, ao mar, igualmente desconhecido e misterioso. Este mesmo mar foi cruzado por pessoas negras africanas, também alijadas do controle sobre seus próprios corpos e vidas, espraiados pelo mundo em diáspora, escravizados pelo poder branco e colonial. Um mar que representou o aniquilamento de vidas e subjetividades e que reverbera, até hoje, em ônibus e metrôs lotados, mas também nos camburões e celas país afora. Depois, com as cidades no século XVII, vieram as grandes internações, aproveitando-se da estrutura dos leprosários. E só depois, bem depois, no Iluminismo, é que vieram as terapêuticas “científicas”. Veja, não é a Psiquiatria quem recomenda a internação. É a Psiquiatria, enquanto ciência, que nasce de dentro das internações — o radical da palavra hospital remete à hospedaria; a ideia era hospedar a pessoa “até a morte chegar” e não “curar ou reabilitar”.
Os primeiros hospícios tinham correntes e grades. Banhos de água fria. Tinham uma perspectiva de um tratamento moral para “corrigir comportamentos”, como se as pessoas precisassem ser ensinadas ou adestradas a serem “normais” ou “adequadas”. Era ali que se produzia o saber sobre a loucura. Não se tratava de um conhecimento sobre o sofrimento mental nos territórios, nem de terapêuticas ou cuidados oferecidos às pessoas em sua vida comunitária. Era uma espécie de “jardim das loucuras”: colocavam-se “As vidas” entre parênteses para olhar só para “As Doenças”. Não era o João ou a Marcela quem se tratava, mas sim O Psicótico, A Histérica. Não eram as determinações sociais do processo saúde-doença que ganhavam relevo, mas teorias racistas que torturavam a realidade até que fizesse “algum sentido”. Faz sentido correlacionar o tamanho do crânio (de pessoas negras, por exemplo) e uma “vocação natural” para a criminalidade, ou inferioridade física e mental? Nenhum. Racismo científico. Um discurso revestido de “cuidado em saúde mental” como porta-voz de teorias de supremacia racial branca e eugenia.
Os primeiros hospícios eram assim, mas, infelizmente, esta história persiste até hoje: muitas instituições de internação como clínicas privadas, Comunidades Terapêuticas e Hospitais Psiquiátricos ainda reproduzem situações bem parecidas. Relatórios como os produzidos pelo Conselho Federal de Psicologia e pelo IPEA denunciam, por exemplo, que em parte das Comunidades Terapêuticas prevalece o tratamento moral ou religioso para “corrigir comportamentos” ou “ensinar um jeito certo de viver”, mais do que aliviar os sintomas do sofrimento psíquico. Em nome de tratar “dependências químicas” ou “surtos”, muitas pessoas ainda são retiradas de seus territórios, colocadas em um espaço entre muros altos envoltos por cercas elétricas, em áreas afastadas das cidades, e têm que lidar com sua vida posta entre parênteses, ou lidar com sua vida reduzida a um nome de transtorno mental. Não é mais a Dani, a Dona Josefa, o Carlo, com suas histórias de vida, sofrimentos, trajetórias, sonhos e frustrações: é “A adicta em cocaína”, “A Bipolar” ou “O noia”. Ainda. E cada vez mais. Tanto o sofrimento mental quanto suas ofertas de saídas diferem a depender da carteira ou da cor da pele. A seletividade com que pessoas negras e brancas que usam drogas são tratadas é escancarada: para uns, a alcunha de “jovem com problemas”, piedosamente amparado em caríssimas e discretas clínicas de rehab. Para outros, tiro, porrada e bomba. Repressão e encarceramento. Para uns é possível viajar com 39 quilos de cocaína em avião da comitiva do Presidente da República. Para outros, a prisão pelo flagrante com 4 gramas de maconha. Para os que usam crack na quebrada, o Choque. Para os que usam “drogas sintéticas” em raves caríssimas, os holofotes e colunas sociais. Isso é pouco, para dizer o mínimo.
Superamos faz tempo essa ideia de que o tratamento se dá só nas internações. Inúmeros estudos da comunidade científica apontam que, para haver cuidado, é preciso haver vínculo, respeito, e é preciso que a pessoa possa estar tocando a vida no território, nas rotinas. Lutamos para que todas e todos possamos continuar reivindicando Políticas Públicas que garantam acessos à educação, saúde, trabalho, lazer e cidadania, especialmente às pessoas marcadas para morrer ou marcadas para ser internadas, em um país com tamanha desigualdade social e violência racial. Não são só as pílulas que vão dar conta disso. Veja, isso não significa que somos contrários a internações em si, mas que questionamos essa produção de estigmas. Isso não significa que sejamos contrários à oferta de cuidados em regimes de acolhimento integral para quadros de muito sofrimento às pessoas e seus núcleos familiares. Não há nada para ser glamourizado no sofrimento humano, inclusive na loucura ou uso abusivo de qualquer substância. Que fique dito.
Mas, significa que defendemos que a internação psiquiátrica há de ser o último recurso, quando as tentativas de cuidado no território não se mostraram suficientes. E que seja uma internação breve, com um Plano Terapêutico para a saída, com acompanhamento multidisciplinar. E, se a internação for mesmo necessária, que seja feita em hospitais gerais, ou em leitos de observação em Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) III, com equipes multidisciplinares e um projeto terapêutico articulado com outras redes de cuidado. Se a pessoa é internada só porque “não tem para onde ir”, essa não é só uma discussão da área de saúde, mas dos programas habitacionais enquanto política pública (programas como “Moradia Primeiro”). Ainda assim, na área da saúde, temos as lutas para construir e sustentar mais Unidades de Acolhimento Transitório ou Serviços Residenciais Terapêuticos vinculados ao CAPS, para que, quando em suas casas, possa continuar recebendo assistência, inclusive medicamentosa, por meio da Estratégia de Saúde da Família vinculada à Unidade Básica de Saúde.
Essa também é uma luta em defesa de espaços públicos, de circulação democrática, uma luta pelas cidades, no sentido de garantir espaços para que se possa conviver, trocar, partilhar das dores e sabores da vida e se ter acesso ao trabalho ou programas de economia solidária e geração de renda. Uma andorinha só… Você sabe o resto! Veja bem, isso não é um delírio, isso tudo já existe e ainda resiste no Brasil de hoje, e é algo que só foi construído porque muitas pessoas estudaram, debateram, reivindicaram esse modelo nos movimentos sociais e em Conferências Democráticas. Afirmamos: isso é possível, e é por isso que instituímos no Brasil a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) no SUS (Sistema Único de Saúde), que precisa ser fortalecida e defendida! Por isso defendemos e lutamos para que o SUS seja fortalecido, com repasses de recursos para a Rede de Atenção Psicossocial, que pode ofertar cuidado nas Unidades Básicas de Saúde, nos Centros de Atenção Psicossocial, nos Serviços Residenciais Terapêuticos. Lutamos contra o financiamento público de Comunidades Terapêuticas e Hospitais Psiquiátricos, que recebem cifras milionárias e imunidade tributária para ofertar serviços pouco transparentes e baseados no isolamento e na abstinência. Lutamos para que as pessoas sejam cuidadas em estágios iniciais dos seus processos de crise, e não precisem chegar ao ponto de precisar se internar!
Lutamos apoiadas e apoiados na premissa de que toda saúde é coletiva. Isso significa que não é “só” a pessoa que adoece, não é “só” o seu organismo ou aparelho psíquico, mas é a sociedade quem adoece, com a pressão para desempenho, para o gozo e felicidades hedonistas parelhas com a luta para a sobrevivência em um mundo onde poucos têm muito e muitos têm tão pouco, e em um país profundamente marcado pelo racismo e pela naturalização de que há pessoas marcadas para morrer, ou para serem varridas para debaixo do tapete. Por isso temos mais um espaço de intervenção, tratamentos e, quem sabe, cura: não só o corpo, mas a sociedade. O cuidado de base comunitária é aquele regulamentado, no Brasil, pela Lei da Reforma Psiquiátrica – Lei nº 10.216 de 2001. Ou seja, “só” nos últimos 25 anos foi que deixamos de validar aquelas kombis, veraneios, ambulâncias ou camburões que internavam pessoas em surto, mas também pessoas “indesejáveis”, à força, sem critérios, como se fossem “carrocinhas”, além de outras formas de internações por atacado como as praticadas durante a Ditadura Civil Militar que vivemos. Lembra bem? Histórias tristes e lamentáveis que faziam desses hospícios uma espécie de holocausto brasileiro, deixando pessoas “indesejáveis” em confinamentos ou campos de concentração.
Superar esse modelo é uma das conquistas dos movimentos da Luta Antimanicomial, e a comunidade científica confirma a eficácia do modelo de cuidado no território como o mais eficaz, respeitoso e digno. Mas, ainda precisamos avançar, pois essas práticas manicomiais, essa ideia de isolar e separar para “corrigir” o indesejável, o que sofre, ainda existe e parece ganhar cada vez espaço com a disputa pelo mercado de tratamento em tempos de poucos investimentos nas políticas públicas. Ou seja, precisamos lutar para sustentar o que conseguimos, e não deixar com que os manicômios voltem em versões “light”, com pisos encerados e eletroconvulsoterapias, em vez de odor de urina e eletrochoque. Sim, toda saúde é coletiva. Entendemos que não se faz Luta Antimanicomial sem reabilitação psicossocial, sem estratégias de geração de renda, sem políticas habitacionais para quem não tem teto, sem educação, sem promoção da igualdade racial e da diversidade de gênero, sem dignidade e respeito integral aos Direitos Humanos, e sem olhar para as formas como o racismo se estrutura na sociedade brasileira e para a desigualdade social na sociedade brasileira.
A Luta Antimanicomial busca a ampliação de novos equipamentos de cuidados, como os CAPS; busca a qualificação profissional, legislações adequadas e repasse orçamentário, mas também uma mudança sociocultural. O estigma de loucura e a periculosidade são construções que justificam o isolamento. Nós lutamos por uma ideia de comum em que caibam as diferenças. Parece utopia, e é utopia: não adianta “curar a loucura”, é preciso mudar o mundo e o sistema, para que as diferenças sejam acolhidas, cuidadas e respeitadas – não se transformando em desigualdades –, e para que tenhamos tratamentos dignos e continuados para as pessoas e suas histórias, e não só para as doenças com seus nomes e pílulas. Não queremos pessoas úteis apenas para a exploração do seu trabalho: queremos pessoas potentes, cheias de vida – em toda a sua complexidade, desafios, sabores e dissabores. Vivemos um processo de exclusão social que se agrava ainda mais quando criamos “sub-raças”, como a dos “noias”, os “vida lokas” ou “dependentes químicos”. O estigma isola, não trata. Não precisamos cair na ilusão de uma sociedade sem drogas. Nunca houve, nem haverá uma sociedade sem drogas.
Uma Guerra às Drogas não resolve o problema; pelo contrário, só produz mais exclusão, cria o tráfico, tira milhões de vidas – inclusive de policiais – e faz com que encaremos problemas complexos de maneiras simplistas. Reforça a marcha necropolítica em curso, que diariamente ceifa a vida de jovens negros e de periferia e lhes retira o direito ao futuro. Que oferece a repressão e o encarceramento em massa como destino para pessoas negras e transforma o Brasil em cárcere e necrotério. Precisamos cuidar das pessoas que têm problemas decorrentes do uso abusivo de substâncias, mas não é a crença na internação que vai resolver isso, ainda mais contra a vontade da pessoa. Por isso as estratégias de redução de danos e o debate antiproibicionista se mostram eficazes, por considerarem a autonomia do sujeito e por proporem ações não só em relação às drogas, mas em relação aos sujeitos e seus contextos.
Neste 18 de maio, lutamos mais uma vez pelas (nossas) “vidas lokas”. A Luta Antimanicomial não é só pelo fim dos manicômios, é pela superação do modelo manicomial: aquele que diz que quem sabe é o especialista, e só ele. Aquele que diz “manda quem pode, obedece quem tem juízo”. Aquele que diz: tome um remédio para acordar, outro para dormir, outro para sonhar, outro para parar de sonhar. Aquele que nos afasta de uma relação potente com os territórios, comunidades, com o meio ambiente. Aquele que escolhe quais vidas valem e quais não importam.
Portanto, só há Luta Antimanicomial se esta for Antirracista e Antiproibicionista. Só compreendendo a complexidade do racismo estrutural e das chagas do manicômio e da Guerra às Drogas é que poderemos, de fato, avançar no cuidado às pessoas excluídas em nome do sofrimento mental na sociedade.
É em nome disso que lutamos, e convidamos você a refletir conosco.
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