A gente atravessava a cidade inteira pra se ver. Era mais fácil ficar morando junto. Foi o que acabou acontecendo. Sabe o que eu mais gostei quando vi aquela pessoa pela primeira vez? As covinhas que se formavam no rosto quando sorria. Pensei comigo: “ai, como eu queria me enterrar nessas covinhas”. É claro que não foi o que eu disse. Na verdade eu nunca lhe contei esse detalhe. Na época eu achava desimportante. Queria surpreender com palavras bonitas, inteligentes, mas o que saiu foi o clássico: “você vem sempre aqui?”, “será que chove?”. E que chuva. Tempestade, trovão, trégua. Poderia chover eternamente por sobre o infinito desse encontro. Nós dois molhados, tremendo de frio. Química, café, cafuné. A pessoa gostava sem açúcar. Eu gostava doce. Depois ficou tudo meio sem sal. A rotina sabe jogar e não entra em campo pra perder. O mesmo papai e mamãe, feijão com arroz, a mesma musica, poltrona. Um dia após o outro. Os ponteiros do relógio no mesmo andamento. O roteirista perdeu a criatividade. A gente vai achando que está tudo bem. Que é assim mesmo. Se acostuma. Não percebe mais as entrelinhas dos dias. As noites se padronizam. Mas lá no fundo fica aquela luz acesa como uma interrogação. Você fecha os olhos e ela lá, acesa, como que questionando algo. Quem dorme com um barulho desses? Boa pergunta!!! Eu não consegui. Parei o filme no meio. Chutei o pau da barraca. Fugi com o circo. Muitos falaram que eu abandonei as bets, mas na verdade eu mudei o jogo. Quando vi a imensidão do mar, o horizonte a se perder nas vistas, os pássaros pálidos, congelados no ar, na paisagem morta, imortalizada num quadro, agradeci a escolha. Luz, câmera, ação. A água salgada mexe com a gente. O barulho das ondas. Cheiro de céu azul. Até a chuva é diferente. Molha o corpo com sabor de som. Depois foi a cachoeira, sonora, seguindo seu curso, mãe da eternidade. Depois a terra seca, se refazendo em fendas, ceifadora de sorrisos. Depois a floresta, úmida, guardiã dos mistérios, provocadora de passos. Nuvens nuas, nuances, sulcos, ciclos. E lá no fundo a luz acesa. Passos desajeitados, estranhamento, entranhamento. Os prédios engolindo o céu. A tarde cinza engolindo a noite. O gosto de asfalto no céu da boca. Fugir da rotina se tornara uma rotina. Por onde andará aquelas covinhas? Será que sabe que estou por aí, sem rumo certo, cavando minhas covas? Esse farol aceso me iluminando o peito. Me cegando aos poucos. Me afogando em faltas. Um descompasso de vôo. Pedregulhos, paralelepípedos. O vento áspero roçando a face. Os membros do corpo em desconcerto. Desconforto. Sentidos em desencontro. Coração e cérebro em desacordo. Um precipício de vozes, silenciosas, soando súplicas, semeando fel. Sepultando falas. Um vazio preenchendo o peito. Uma palavra pendente. Um olhar por sobre a fragilidade da existência. Uma cobra engolindo o rabo. O gênesis no âmago do ômega. Bateu sombra nos sonhos. E a luz acesa. __________________________________ (do livro Contos que me Contam – de Mano Zeu). Conto incluído na edição 49 de Escrita.
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