à Maria Rosa é levada por um servidor do SIP. – Foto: Vladimir Kozák, 1955, acervo MAE-UFPR
De H2Foz / Escrito Por Denise Paro Júlio Cesar da Silva tem 36 anos e uma história de vida marcada por encontros e desencontros. O pai, Tikuen Iratxó, quando criança, vivia em meio à mata na Região Noroeste do Paraná até que foi forçado a deixar a própria casa por funcionários do governo e colonizadores.
A época era 1940, e a colonização da frente cafeeira avançava vertiginosamente no Paraná e passava o trator por tudo que encontrava pela frente. O território xetá não ficou livre, fato que levou a comunidade praticamente a ser exterminada.
Há relatos de que caminhões de companhias colonizadoras saíam da mata carregados de índios com alegação de que iam levá-los para outras terras. Mas até hoje não se sabe quais. Dos cerca de 200 xetás que viviam na Região Noroeste, apenas oito crianças sobreviveram.
Algumas delas acabaram raptadas, outras levadas por servidores do então Serviço de Proteção ao Índio (SPI), atual Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), e uma parte foi criada por fazendeiros.
Separadas dos pais pela violência cometida, as poucas crianças restantes sobreviveram por sorte. O pai de Júlio foi uma delas.
“É até um pouco triste a história, porque era mesma coisa que animal. As pessoas chegavam, escolhiam, esse indinho eu vou pegar, cuidar, e assim foi dispersando o povo na época”, conta Júlio. “Eles levaram e até hoje a gente não sabe o que aconteceu.”
Ele diz que o pai vivia na região de Umuarama e foi forçado a sair da terra. Não foi raptado porque deixou a casa onde morava com o avô. Por um bom tempo, eles ficaram perambulando de aldeia a aldeia, incluindo guarani e caingangue.
E assim Júlio foi parar em uma aldeia caingangue em São Jerônimo da Serra, região de Londrina, onde vive hoje e se tornou cacique. Pai de seis filhos, é casado com uma indígena guarani.
Filhos e netos de Tikuen em São Jerônimo da Serra – Foto: Marina Oliveira/Acervo CIMI
Tikuen, pai de Júlio, chamava-se José Luciano da Silva. Ele morreu em 2005, aos 61 anos. Na ocasião, estava em Brasília, quando acompanhava o linguista Aryon Rodrigues na elaboração de um dicionário da língua xetá e teve um acidente vascular cerebral (AVC). Tikuen tinha o hábito de falar com a própria imagem projetada noo espelho para poder preservar a sua língua.
A área da Serra dos Dourados, região de Umuarama, onde os xetás viviam, hoje é usada para o plantio de cana-de-açúcar voltada à produção de etanol, lavouras de café, pasto e criação de gado.
As oito crianças que sobreviveram se dispersaram e passaram a viver em locais separados. Agora adultas, somente cinco estão vivas. “As crianças foram crescendo sem saber da existência uma das outras. Cada um achava que era o único daquele povo”, explica Osmarina de Oliviera, do Conselho Indigenista Missionário – Cimi Sul.
Os xetás só foram encontrar-se 40 anos depois, em 1990, quando um deles acabou acusado de assassinato, o que levou a Funai a ir atrás de outros xetás em busca de informações sobre o crime.
Na ocasião, o acusado foi absolvido, e a partir do encontro se criou o pretexto para reagrupar a comunidade. Osmarina diz que os xetás só foram reconhecidos como povo no início da década de 1990, muito pela contribuição do antropólogo José Loureiro Fernandes, da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Loureiro trabalhou com os pesquisadores Vladimir Kozák e Annette Laming-Emperaire,
Com a intervenção de Loureiro, foi criado o Parque Nacional das Sete Quedas, para abrigar o povo xetá. No entanto, com a construção da Itaipu Binacional, em 1981 a proposta foi abortada, em razão do alagamento da área situada na região de Guaíra.
A partir de estudos feitos por técnicos e antropólogos, a Funai criou um grupo técnico para identificação e delimitação da terra xetá. Inicialmente, o órgão reconheceu uma área de aproximadamente 12 mil hectares para abrigá-los.
Isso gerou um alarde na região, e muitos pequenos agricultores não indígenas passaram a temer que fossem perder terras. Com a pressão feita, muito com apoio de políticos, o órgão retrocedeu. Em vez de uma área maior, a Funai mudou os planos e optou por uma única fazenda de 2.800 hectares.
Porém, os revezes continuaram. A empresa que administrava a fazenda entrou na Justiça para evitar a demarcação da terra, alegando que os xetás nunca viveram lá.
Após cobrança do Ministério Público, a Justiça Federal solicitou que fosse feita uma perícia na fazenda, que fica na região de Umuarama. Com base no resultado e no contexto do Marco Temporal, que prejudicou os povos originários, o Judiciário deu ganho de causa à empresa. “Foi desconsiderada toda a violência que esse povo passou e tem passado”, salienta Osmarina.
O Supremo Tribunal Federal (STF) ainda não publicou o acórdão com a decisão do julgamento. E com a implementação do Marco Temporal tudo ficou mais difícil para o povo xetá. A tese do Marco Temporal é de que os povos originários só teriam direito à demarcação dos territórios que estivessem sob sua posse até dia 5 de outubro de 1988, ou que, nessa data, estivessem sob disputa física ou judicial comprovada.
Assista também: Xetás, documentário dirigido por Fernando Severo
Mesmo diante das dificuldades, os xetás se reconhecem como povo. Os poucos que restaram se casaram com não índios e integrantes de povos caingangue e guarani. Também conhecidos por setá, chetá, hetá, até, ñadereta), os xetás é um povo falante de uma língua tupi-guarani.
Atualmente, um grupo de xetás pressiona o Judiciário e a Funai para a delimitação e demarcação das terras, mas tudo é muito difícil e lento. Em novembro, Júlio esteve no I Seminário Internacional do Mundo Guarani, promovido pela Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila), e entregou um documento à ministra Sônia Guajajara pedindo a regularização das terras.
Retirados à força da própria terra a partir da década de 1940, os poucos xetás que restaram no Paraná ainda vivem longe uns dos outros.
Júlio (à direita) entrega documento à ministra Sônia Guadajajara na UNILA – Foto: Comunicação UNILA
A Funai se diz com as mãos amarradas, porque não foi publicado o acórdão, e a decisão do Marco Temporal atrapalha o processo.
Enquanto a situação não se resolve, o CIMI sugeriu que a Funai arque com recursos para que os xetás façam reuniões, reúnam-se para conversar e contar histórias.
O escritório regional da Funai em Guarapuava informou ao H2FOZ que encaminhou para Brasília pedido para demarcação de uma terra destinada aos xetás na região de Campo Mourão, mas pouco se sabe sobre o andamento do processo.
Hoje, a maioria dos xetás parentes de Tikuen está em São Jerônimo da Serra. Porém também há xetás que moram na Terra Indígena Marrecas, em Turvo, Região Central do estado, em Rio da Areia, em Inácio Martins e na Terra Indígena Xapecó, em Ipuaçu (SC). Um grupo vive em Curitiba.
Fonte: (mapa Lilianny R. B. Passos, Flávio Machosiki – Fonte: IBGE e Funai)
Das oito crianças, estão vivas: Kuein Manhaa’ei Nhaguakã, Ã Maria Rosa – Moko na língua Xetá –, Tiguá Maria Rosa Brasil, Tiguá Ana Maria e Moha’ay Rondon Xetá.
O território xetá ficava próximo à foz da Bacia do Rio Ivaí, região conhecida por Serra dos Dourados, região de Umuarama, no Noroeste do Paraná.
A história desse povo se cruza com ocupação branca do Noroeste do Paraná em 1840, quando exploradores contratados pelos governos provincial e imperial fizeram contatos com alguns grupos na região do Rio Ivaí em expedições promovidas pelo Barão de Antonina.
Um século depois, a trajetória de vida dos xetás sofreu outro grande impacto. Entre 1940 e 1960, com a expansão do plantio de café, o Governo do Paraná repassou terras a empresas colonizadoras, tais como Suemitsu Miyamura & Cia. Ltda. e a Companhia Brasileira de Imigração e Colonização (Cobrimco), que pertencia ao Grupo Bradesco, mudando o curso da vida da comunidade.
Com a medida, o estado autorizou a colonização da Serra dos Dourados, território dos xetás. O início das operações da Cobrimco, em 1951, levou a uma série de sequestros de crianças que estavam em aldeias e a desaparecimentos em caminhões com destino desconhecidos.
Em 1952 e 1953, dois meninos foram raptados por agrimensores e servidores. Um deles foi Anhambu Guaka que foi visto em uma árvore. Levado para Curitiba, ele foi criado pela família de um inspetor do SPI e recebeu o nome de Tucambá José Paraná, conhecido por Tuca.
Tuca dominava o idioma xetá e por muito tempo atuou como intérprete, servindo de guia, inclusive para a imprensa, nas incursões pela mata para fazer contato com outros xetás. Ele morreu em 11 de junho de 2007 em Curitiba, aos 61 anos, após sofrer um derrame cerebral.
Tempos depois, os cerca de 200 xetás que viviam na região de Umuarama, conforme estudos e estimativas, desapareceram e o coletivo se limitou a dezenas de pessoas. Muitas delas foram levadas para a terra de um deputado beneficiado pela colonização, mas não se sabe ao certo o destino que tiveram.
Entre 1955 e 1961, o antropólogo José Loureiro e o cinegrafista Vladimir Kozák fizeram diversas expedições à região onde os xetás estavam, denunciando para organismos internacionais abusos praticados pelo estado e colonizadoras. Após a morte deles, na década de 1970, pouco se falava sobre os xetás.
Também, na década de 1950, chamou atenção da imprensa nacional e internacional, incluindo a revista estadunidense Time que, no início de 1959, retratou os xetá como “últimos índios da idade da pedra”.
Em 2017, o drama dos xetás foi reconhecido como genocídio em relatórios da Comissão Nacional da Verdade (CNV) e Comissão Estadual da Verdade do Paraná.
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