Favela de Paraisópolis margeia condomínio de luxo em São Paulo. (Foto: Clasco)
“O impacto desta pandemia, no que tange ao aspecto econômico e político, sobre as populações mais vulneráveis, sejam elas urbanas ou rurais, indígenas ou tradicionais, é de uma proporção gigantesca, avassaladora”, analisa a cientista social e docente do curso de Antropologia da UNILA Senilde Alcântara Guanaes. A crise econômica e política que nasce com a crise sanitária, diz a docente, vai “afetar de um modo muito desigual essas populações, esses grupos sociais”, principalmente, porque não existem condições de se conhecer em que medida essas comunidades estão sendo afetadas. Consequentemente, não há como adotar “medidas necessárias para que haja um mínimo de proteção, de garantia institucional à saúde desses povos e comunidades”.
Senilde Guanaes é a entrevistada do quarto episódio da nova temporada da websérie “Fator Ciência”, produzida pela Secretaria de Comunicação (SECOM), da UNILA. Esta temporada é dedicada a analisar a pandemia de Covid-19 e suas consequências. Doutora em Ciências Sociais com ênfase em Antropologia, Senilde também atua no mestrado em Integração Contemporânea da América Latina (PPG-ICAL). O episódio está disponível no Youtube e em formato de podcast no Spotify.
Assista à entrevista na íntegra:
Para Senilde, a pandemia amplia e agrava a situação de vulnerabilidade, de deslocamento forçado e de isolamento de muitas comunidades. “Populações, muitas vezes isoladas, sem condições de acesso à saúde, escola, educação, saneamento básico, a uma série de aparelhos, de dispositivos públicos ou de políticas públicas”, diz.
Ela lembra que, historicamente, o Brasil tem um processo social de profunda desigualdade, que vem aumentando, e que a organização político-territorial favorece as elites, oligarquias e o latifúndio, em detrimento do território dessas populações. “São processos extremamente violentos e que empurram essas populações para áreas fronteiriças, para áreas com terras menos valorizadas ou, no caso do campo para a cidade, para as áreas mais periféricas dentro das cidades, para as comunidades que são consideradas favelizadas. A gente tem esse processo de longa data.”
Segundo ela, as poucas conquistas e avanços registrados são consequências de “muita luta dos movimentos sociais”, principalmente a partir da Constituição de 1988. “Ao longo de algumas décadas, essas garantias, através de pressão social, foram integradas às políticas públicas, às políticas de Estado. E é importante dizer que, nos últimos tempos, a gente vem perdendo esses poucos avanços que foram conquistados com muito suor, muita luta dos grupos, dos movimentos”.
“Essa pandemia tem um caráter político muito forte porque vai afetar lugares que são considerados epicentros do capitalismo contemporâneo. Isso não dissocia a pandemia, em momento nenhum, em nenhum país, das questões políticas e logicamente econômicas”
A pandemia se estabelece, aponta Senilde, nesse cenário de perda de garantias, de ruptura democrática, que vem sendo registrado não só no Brasil, mas em outros países da América Latina. “O que ocorre é que a pandemia chega em um momento extremamente danoso em termos políticos para esses grupos, para essas comunidades”, analisa, chamando a atenção para as populações indígenas, quilombolas e para as comunidades tradicionais.
Para ela, seria necessária a organização de uma resistência política. “Mas, no meio de uma pandemia, como é que se faz isso? Como é que se organiza? Como é que esses grupos conseguem se organizar sendo que a maioria ainda não tem acesso a computador, não tem acesso à internet de qualidade?”, argumenta.
Sobre a falta de testagem e de dados confiáveis sobre as vítimas do coronavírus, a pesquisadora destaca que as ações estão partindo de municípios e Estados, sem uma coordenação nacional, e que, no caso dos indígenas, especificamente, há uma grande dificuldade de atendimento a essas comunidades. “São muitas comunidades indígenas, muitas terras indígenas espalhadas por todo o Brasil e pouca gente para trabalhar nessas áreas, (…) para levar suprimentos ou fazer testes.” Aliado a isso, completa, existe ainda uma situação de isolamento. “Algumas dessas aldeias são aldeias mais distantes, de difícil acesso. Essa também é uma dificuldade para fazer os testes e o levantamento. E uma outra questão que também é muito importante é que uma parte da população indígena sequer tem documentação ainda, que pode dar acesso a exames, ao atendimento no SUS”.
Segundo dados da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), ligada ao Ministério da Justiça, 301 indígenas estão infectados com coronavírus e 19 morreram de Covid-19 em todo o país, com a região Norte sendo a mais atingida. A Sesai tem sob sua responsabilidade 38.945 indígenas, de 11 etnias, e distribuídos em 194 aldeias demarcadas. “Mesmo quem não acompanha o debate sobre a questão indígena sabe que existe um número imenso de aldeias que ainda não foram demarcadas”, ressalva, dizendo que a maior parte da população indígena está em áreas não demarcadas. “Eles sequer entram nesse cálculo. É muita gente de fora desse levantamento.”
Senilde aponta uma série de medidas que podem ser adotadas para minimizar os danos às populações mais vulneráveis, partindo do levantamento de dados. “Aí, entra o papel fundamental da universidade pública para fazer esse levantamento, conhecer essas comunidades, essas sociedades”, diz. “Hoje, seguramente, nenhuma dessas políticas públicas é possível de ser executada sem pesquisa sobre essas populações”, completa.
Outra medida, segundo ela, é recuperar dentro dos órgãos governamentais as políticas públicas e programas que já foram iniciados, mas estão paralisados. “E é fundamental o governo federal assumir o seu papel na liderança”, afirma.
Como parte de uma medida de combate à pandemia, o IBGE, observa a docente, disponibilizou dados recentes sobre as comunidades indígenas e quilombolas no Brasil. “A publicação prévia desses estudos pretende subsidiar políticas de desenvolvimento de estratégias para enfrentar a Covid-19”, explica. Segundo esses dados, são 7.103 localidades indígenas e 5.972 localidades quilombolas.
Para ela, é essencial a articulação do governo federal com estados e municípios para que as estratégias de enfrentamento da Covid-19 tenham bons resultados. “A gente percebe que há uma tensão muito grande do Executivo com o Legislativo, com o Judiciário. Uma total falta de comunicação. Muitos governadores, prefeitos, reclamam, ressentem de um descuido, de uma falta de diálogo com o governo federal. É importante, de novo, fazer esse trabalho de conversar, de ir a cada localidade conversar com esses dirigentes, para que haja políticas locais direcionadas para essas populações”, avalia.
Mídia As comunidades indígenas e quilombolas também têm pouco espaço na mídia, na cobertura da pandemia. “A pandemia não traz nada de novo nesse sentido”, diz a antropóloga. A sociedade, alimentada pela grande mídia, vai construindo uma imagem do índio agressor, violento, invasor de terras. “Essa é a narrativa que tem sido construída sobre os povos indígenas de modo geral, sobre as comunidades quilombolas também, há muito tempo, por esses meios de comunicação hegemônicos. A pandemia é um momento em que isso só se deflagra com uma força maior: ou não se mostra, porque não tem nada de importante para mostrar; ou mostra mais uma vez dentro dessa narrativa, dessa construção, desse discurso, que é o discurso do índio deteriorado, do índio que tem que seguir os caminhos da civilização, do crescimento econômico, do desenvolvimento.”
O isolamento das comunidades, pelas autoridades, ao mesmo tempo em que protege os indígenas, analisa Senilde, também os deixa mais frágeis. “Um dos primeiros movimentos foi o isolamento das aldeias, impedir que as pessoas fiquem circulando. O que está correto, o isolamento é necessário, mas ele também coloca em risco, em vulnerabilidade maior ainda esses povos, porque quem está fazendo pesquisa e os próprios operadores das políticas públicas têm dificuldade de acessar essas populações em meio à crise, que continua acontecendo, de ataques que continuam acontecendo. Ataques armados, inclusive”.
Ciência Senilde destaca o papel da universidade pública e da ciência neste momento de crises (sanitária, econômica, social). “Ciência significa conhecimento de si, da sociedade, do meio em que vivemos. Tudo o que a gente cria, tudo o que a gente produz, produz a partir do conhecimento que a gente tem do meio e das demandas. Sequer essas demandas serão conhecidas se a gente não tiver o auxílio da universidade em todas as suas áreas.”
Ela lembra que as Ciências Sociais possibilitam o conhecimento das sociedades, de grupos e de suas especificidades, e, ainda, têm a capacidade de perceber, identificar, classificar e organizar essas demandas, possibilitando uma melhor eficácia das políticas públicas. “Quanto mais se investe nessas áreas, mais economia para os cofres públicos, porque menos se gasta com pesquisas que são jogadas fora, com políticas que não dão certo, que ficam só no papel. Isso é fundamental”, afirma.
Ela ressalta que o investimento em ciência, no Brasil, ainda é muito baixo. “Eu queria reforçar isso, a gente está falando de dinheiro público bem empregado. Se você observa o quanto é investido na universidade pública no Brasil, embora todo o mito construído de ataque às universidades, de ataque à própria ciência nos últimos anos no país, nós gastamos muito pouco, custamos muito pouco para os cofres públicos em relação ao que a gente devolve para a sociedade em termos de projetos de extensão, projetos de pesquisa, de formação de cidadania, formação de todas as áreas do conhecimento.”
A série A websérie Fator Ciência estreou no dia 8 de maio. Por conta do período de isolamento social, o programa está em novo formato e foi gravado a distância, por meio da plataforma Zoom. Os capítulos serão divulgados sempre às sextas-feiras, no canal da UNILA no YouTube e também em formato podcast no Spotify.
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