O filme Deserto Particular, produzido por ex-alunos do curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Estadual do Paraná (Unespar), foi indicado na semana passada pela Academia Brasileira de Cinema e Artes Audiovisuais para representar o Brasil no Oscar 2022. O longa venceu a disputa com outros 15 filmes nacionais. – Fotos: Reprodução
2021 é um grande ano para Aly Muritiba, diretor baiano radicado em Curitiba. A adaptação em formato de série documental do podcast O Caso Evandro para a Globoplay foi um sucesso comercial e pautou discussões em âmbito estadual sobre tortura e direitos humanos; Jesus Kid, adaptação do romance homônimo de Lourenço Mutarelli, rendeu a ele prêmios no Festival de Gramado – repetindo o feito de Ferrugem, também premiado em Sundance, a Meca do cinema independente americano; e Deserto Particular não apenas saiu do prestigiado Festival de Cinema de Veneza com o título de Melhor Filme, como foi escolhido pela Academia Brasileira de Cinema e Artes Audiovisuais para representar o Brasil no Oscar 2022.
Há ainda um longo caminho para que Muritiba possa se tornar o primeiro brasileiro a ostentar um icônico careca dourado na estante de casa, mas ele está disposto a trilhar o caminho. Nascido no interior da Bahia, em Mairi, ele mora em Curitiba desde 2003 e boa parte da sua produção tem o Paraná como cenário. A Fábrica, por exemplo, possui como pano de fundo o sistema penitenciário. Para Minha Amada Morta é um thriller sufocante com takes de Curitiba.
Boa parte da inspiração também vem da vivência com outros alunos do curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Estadual do Paraná (Unespar), onde estudou a partir de 2006. Nesta entrevista, concedida à Superintendência da Cultura do Paraná, Muritiba reflete sobre seu momento cinematográfico, inspirações, metáforas futebolísticas, passado, chancela dos festivais internacionais e a volta para casa.
Até este ano apenas seis filmes brasileiros figuraram na lista final de indicados ao Oscar de Melhor Filme Internacional: O Pagador de Promessas (1963), O Quatrilho (1996), O Que é Isso, Companheiro? (1998) e Central do Brasil (1999). Nenhum ganhou.
Deserto Particular narra a história de Daniel, policial exemplar que acaba cometendo um erro que coloca em risco sua carreira. Quando nada mais parece o prender ao Paraná, parte em busca de Sara, mulher com quem se relaciona virtualmente. O filme estreia nos cinemas em novembro.
Como você recebeu a notícia?
Recebi no meio do sertão da Paraíba, no meio do mato, porque eu estava trabalhando em uma série. Aí no intervalo do almoço a assessora de imprensa tinha mandado mil mensagens, “me liga, me liga”, liguei e ela falou “cara, escolheram Deserto Particular”. E muito embora eu tivesse esperança, senão não teria inscrito, porque acredito muito no potencial do filme, eu achava que não ia rolar. Um dos concorrentes é um filme incrível, com Netflix, Rodrigo Santoro, O2 e Fernando Meireles [7 Prisioneiros, dirigido por Alexandre Moratto]. Então era tipo o Coritiba enfrentar o Flamengo hoje em dia. Só que o Coritiba foi lá e meteu gol!
Inscrevemos porque acreditamos muito no filme e no poder da narrativa. Mas foi surpreendente porque, sem brincadeira, 7 Prisioneiros é um filme incrível. De verdade, é muito bom e vai causar boa impressão, feito por um diretor incrível, que tinha feito um filme anterior muito bacana, que é Sócrates (2018). Então fiquei muito feliz e logo depois muito preocupado, porque tem que fazer campanha e empreender esforços que eu nem sabia que precisavam.
Mas você já tinha feito campanha pelo A Fábrica, seu curta de 2011, que quase se qualificou para o Oscar, não?
Para os curtas é assim: existem alguns festivais do mundo que são Oscar Qualifying, se você ganha esse festival, você passa a ter direito de inscrever o seu curta. Com um longa é diferente. São os países que escolhem qual irá representar. Na época d’A Fábrica a gente tinha ganhado uma porrada de festivais Oscar Qualifying e eu falei “vou inscrever”. Ficamos na short list. São cinco curtas de ficção que concorrem, mas existe uma short list com nove, e nós ficamos entre esses nove. Então ficamos perto do Oscar em 2013. E naquela época buscamos isso, achávamos mesmo que podia rolar, porque é um filme tocante.
E agora com Deserto Particular está rolando essa oportunidade, só que dessa vez delegada pela Academia Brasileira de Cinema e Artes Audiovisuais, uma honraria e uma responsabilidade muito grande. Mas ainda temos etapas. Em 21 de dezembro eles divulgam uma short list, com 15 longas. Dessa short list eles tiram nove ou dez, que aí vão concorrer aos cinco finalistas. Então vamos aí. Um passo de cada vez, uma porta de cada vez.
Você vem trilhando uma carreira internacional. Ferrugem foi para Sundance, o próprio Deserto Particular foi premiado em Veneza. Você acha que tem muita diferença entre esse circuito de festivais e o Oscar?
Do ponto de vista de carreira para o filme, essa pré-indicação ao Oscar traz bastante atenção. Porque poucas pessoas, falando do grosso da população, sabem o que é um festival de cinema como Cannes, Veneza, Berlim, Gramado. E não se interessam porque esse é um círculo muito restrito. Mas todo mundo sabe o que é o Oscar. Eu estou vendo isto na prática. O filme foi pré-selecionado para representar o Brasil no Oscar, e desde então o interesse cresceu de maneira muito grande. Então isso se reflete, imagino, na possibilidade de mais espectadores verem o filme. Se porventura o filme figurar na short list de 21 de dezembro, e se porventura, com a graça de Oxalá, estiver lá entre os indicados, então com certeza muita gente vai querer ver, e como a gente faz filmes para as pessoas verem, é maravilhoso.
O Karim Aïnouz, quando foi pré-selecionado por A Vida Invisível, disse que nunca ligou para Oscar, mas se empolgou quando foi indicado como representante brasileiro e batalhou pela vaga. E você, como se relaciona com isso?
A gente cospe para cima para que o cuspe cai no olho. Outro dia o Maurício Vianna Baggio, que já fotografou muitos dos meus filmes, mandou uma mensagem tirando onda da minha cara, dizendo: “Muritiba, lembra que quando você fez A Fábrica eu falei que um dia você iria para o Oscar, que você era diretor de Oscar, e você desdenhou o Oscar dizendo que você queria mesmo Cannes, Veneza… E aí?”. E eu falei: “não, você está certo, é óbvio que eu quero”. (risos)
Mas o que acontece. O Oscar é um prêmio de uma indústria muito específica, que é a norte-americana. Eles se acham tão incríveis que se acham no direito de chancelar filmes de outros países. Beleza. Esse é o jogo? Vamos jogar esse jogo! Se o filme não figurar entre os indicados eu já estou no lucro. A produtora é do Paraná, o diretor da Bahia, foi filmado no Paraná e na Bahia, com orçamento minúsculo, com atores que não são conhecidos, celebridades e tal. Esse filme está onde está pela força de sua história e pela capacidade narrativa de quem o fez. Então, se não rolar, já estou no lucro, mas eu estou muito feliz.
Agora, já que botaram a bola no meu pé, eu vou chutar e vou chutar para fazer gol. Pode ser que o goleiro defenda, pode ser que vá na trave, pode ser que saia, mas está na marca do pênalti e eu estou aqui concentradaço para bater, então não vai ser cavadinha. Vai ser bomba!
Qual a diferença de filmar no Paraná e na Bahia? Foi a mesma equipe?
Foi exatamente a mesma equipe, só que a equipe do Deserto Particular foi bastante diversa. Teve gente de diversos estados brasileiros. O núcleo duro é a minha galera, que faz filmes comigo desde sempre, no Paraná, mas veio gente de Brasília, do Rio Grande do Sul, da Bahia, de Pernambuco, do Rio de Janeiro. Veio gente da Argélia (assistente de fotografia) e veio gente da França (fotógrafo). Nesse sentido foi um pouco mais difícil porque a equipe não estava entrosada, nem todo mundo me conhecia, nem todo mundo entendia meu jeito de trabalhar. Então ajustes foram sendo feitos à medida que o filme foi sendo feito. Foi a primeira vez que filmei na Bahia, em uma cidade pequena, que não tem estrutura de produção. Você não tem empresas especializadas em alimentação e transporte de cinema em Sobradinho ou Juazeiro. Mas a gente vai lidando com o que o mercado local pode oferecer e está tudo certo.
O filme estreia nos cinemas em novembro. Foto: Reprodução
Legal que você mencionou o fotógrafo. As cidades brasileiras têm uma luz muito particular. Como vocês encararam isso e como resolveram fotografar Curitiba e o interior da Bahia?
O Luis Armando Arteaga, que é um franco-venezuelano, que fotografa muito na América Latina, é um grande fã do cinema brasileiro, disse que resolveu parar de fazer filmões na França para fazer filmes latino-americanos por causa de O Céu de Suely (2006, dirigido por Karim Aïnouz). Então ele já estudava muito o cinema brasileiro, principalmente o cinema nordestino. Então o Luis fez questão de vir um tempo antes aqui para o Brasil. Justamente para fazer esse estudo de luz, de comportamento de luz, de atmosfera desses lugares. E a troca entre nós dois foi muito incrível nesse sentido. Porque para mim era muito importante que isso saltasse aos olhos na tela. Que o clima, que a sensação térmica, que a sensação tátil, que o poro, que a pele, se comportasse de maneira distinta, em Curitiba, que é um lugar frio e úmido, do que acontece em Sobradinho e Juazeiro, que é quente e muito seco. E aí a pele é diferente, tudo é diferente.
Você é um baiano radicado em Curitiba e fez um filme com um personagem que faz o caminho inverso, um curitibano que vai para o interior da Bahia. Como você se relaciona com o personagem?
Na verdade, fiz esse personagem viajar para a Bahia porque eu queria muito fazer esse movimento, sob o ponto de vista cinematográfico. Deserto Particular é a realização de um sonho meu que é filmar na minha terra. No argumento original, esse cara viajava para uma cidade muito pequena na fronteira do Brasil com o Paraguai, perto de Foz do Iguaçu. E aí eu pensei “por que vou filmar perto de Foz do Iguaçu? Não! Vou filmar em Sobradinho”. E aí fiz Daniel (personagem de Antonio Saboia) viajar para lá porque eu também queria fazer essa viagem cinematográfica. Nesse sentido, a trajetória desse personagem é o espelho inverso da minha. Eu viajei de lá para Curitiba, da Bahia para Curitiba, e permaneço em Curitiba até hoje. Daniel viaja de Curitiba para Sobradinho e não sabemos se ele está lá até hoje.
É mais um personagem policial na sua obra. Para Minha Amada Morta tinha um detetive, a Trilogia do Cárcere tem essa relação com os carcereiros. O que te interessa nessas figuras com uma ideia de masculinidade amparada por esse aparato de segurança?
Eu sou um sujeito formado pela égide do patriarcado e do machismo. Somos um País essencialmente patriarcal e machista. Eu nasci no sertão da Bahia, então a coisa é um pouco mais aguda até. E a medida em que fui me tornando um sujeito consciente, em que fui me relacionando com outras pessoas, com uma série de pessoas provocadoras, de mulheres provocadoras, a mulher com quem eu me casei, a mãe dos meus filhos, a mulher com quem eu namoro, os amigos e amigas com quem fui travando contato, foi ficando cada vez mais claro para mim o quão arraigado estava o patriarcado em mim, embora eu o negasse. E eu comecei a refletir sobre isso e acabou sendo refletido nos meus filmes. Para Minha Amada Morta, Ferrugem e Deserto Particular podem ser enxergados como uma trilogia acerca dos afetos masculinos. E onde os afetos masculinos patriarcais estão mais agudos sob meu ponto de vista são nesses universos mais conservadores, que também são os universos policiais. Então eu, como cidadão, ando refletindo muito sobre masculinidade e isso acaba transbordando para as histórias que eu escrevo, para personagens que crio.
Quão paranaense você se sente?
Eu sou só baiano, mas eu devo muito ao Estado do Paraná. Eu tenho uma gratidão muito grande a Curitiba, onde eu escolhi viver, tenho uma filha curitibana. Gosto muito da cidade. O meu cinema é paranaense também, porque ele é feito no Paraná, com histórias desse lugar, personagens desse lugar, com financiamento, desse lugar. A produtora que produz meus filmes é do Paraná. O festival de cinema que eu criei, o Olhar de Cinema, é do Paraná. Mas eu sou baiano.
E como foi, então, trabalhar dirigindo o documentário O Caso Evandro, que é algo muito paranaense. Como foi seu olhar de estrangeiro para uma história como essa?
Eu não tenho essa diferenciação. Eu sempre olho para as histórias que estou contando com o olhar do estrangeiro, porque o olhar do estrangeiro é o olhar do curioso, do interessado. Até por isso que os meus personagens têm coisas de mim, mas são muito diferentes de mim. Estou sempre olhando com o olhar do estrangeiro. Acho que quando eu começar a olhar com olhar do conhecedor devo mudar de profissão. Vou fazer outra coisa.
Mas o caso Evandro é uma história muito paranaense. É a adaptação de um podcast de um cara que é do Nordeste, mas criado no Paraná, que é o Ivan Mizanzuk. E ele construiu toda essa narrativa, mas a série é dirigida por um baiano e uma fluminense, a Michele [Chevrand]. No fim das contas, a história do Caso Evandro é uma história bastante universal. É a história sobre os erros do sistema e a complacência da sociedade com a violência policial. E isso é universal. E foi sobre isso que nós falamos. Nós não contamos a história de Guaratuba. A cidade é o pano de fundo, onde a história se desenrola. Mas a história é sobre o Judiciário, sobre o Ministério Público, sobre a permanência da tortura como método investigativo por parte das forças policiais, sobre as disputas de poder. E são todas questões muito universais.
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