— Para mim esta é a melhor hora do dia — Ema disse, voltando do quarto dos meninos. — Com as crianças na cama, a casa fica tão sossegada. — Só que já é noite — a amiga corrigiu, sem tirar os olhos da revista. Ema agachou-se para recolher o quebra-cabeça esparramado pelo chão. — É força de expressão, sua boba. O dia acaba quando eu vou dormir, isto é, o dia tem vinte e quatro horas e a semana tem sete dias, não está certo? — descobriu um sapato sob a poltrona. Pegou-o e, quase deitada no tapete, procurou o par embaixo dos outros móveis. — Não sei por que a empregada não reúne essas coisas antes de ir se deitar — empilhou os objetos no degrau da escada.
— Afinal, é paga para isso, não acha?
— Às vezes é útil a gente fechar os olhos e fingir que não está notando os defeitos. Ela é boa babá, o que é mais importante.
Ema concordou. Era bom ter uma amiga tão experiente. Nem precisa ser da mesma idade — deixou-se cair no sofá — Bárbara, muito mais sábia. Examinou-a a ler: uma linha de luz dourada valorizava o perfil privilegiado. As duas eram tão inseparáveis quanto seus maridos, colegas de escritório. Até ter filhos juntas conseguiram, acreditasse quem quisesse. Tão gostoso, ambas no hospital. A semelhança física teria contribuído para o perfeito entendimento?
“Imaginava que fossem irmãs”, muitos diziam, o que sempre causava satisfação.
— O que está se passando nessa cabecinha? — Bárbara estranhou a amiga, só doente pararia quieta. Admirou-a: os cabelos soltos, caídos no rosto, escondiam os olhos cinza, azuis ou verdes, conforme o reflexo da roupa. De que cor estariam hoje?
— inclinou-se — estão cinza. Ema aprumou o corpo.
— Pensava que se nós morássemos numa casa grande, vocês e nós…
Bárbara sorriu. Também ela uma vez tivera a ideia — pegou o isqueiro e acendeu dois cigarros, dando um a Ema, que agradeceu com o gesto habitual: aproximou o dedo indicador dos lábios e soltou um beijo no ar. — As crianças brigariam o tempo todo.
Novamente a amiga tinha razão. Os filhos não se suportavam, discutiam por qualquer motivo, ciúme doentio de tudo. O que sombreava o relacionamento dos casais.— Pelo menos podíamos morar mais perto, então.
Ema terminava o cigarro, que preguiça. Se o marido estivesse em casa seria obrigada a assistir à televisão, porque ele mal chegava, ia ligando o aparelho, ainda que soubesse que ela detestava sentar que nem múmia diante do aparelho — levantou-se, repelindo a lembrança. Preparou uma jarra de limonada. Por que todo aquele interesse de Bárbara na revista? Reformulou a pergunta em voz alta.
— Nada em especial. Uma pesquisa sobre o comportamento das crianças na escola, de como se modificam as personalidades longe dos pais.
No momento em que Ema depositava o refresco na mesa, ouviu-se um estalo.
— Porcaria, meu sutiã arrebentou.
— A alça?
— Deve ter sido o fecho — ergueu a blusa — veja.
Bárbara fez várias tentativas para fechá-lo.
— Não dá, quebrou pra valer.
Ema serviu a limonada. Depois, passou a mão pelo busto.
— Você acha que eu tenho seio demais?
— Claro que não. Os meus são maiores…
— Está brincando — Ema sorriu e bebeu o suco em goles curtos, ininterruptos.
— Duvida? Pode medir…
— De sutiã não vale — argumentou. — Vamos lá em cima. A gente se despe e compara — aproveitou a subida para recolher a desordem empilhada. Fazia questão de manter a casa impecável. Bárbara pensou que a amiga talvez tivesse um pouco de neurose com arrumação. Ema acendeu a luz do quarto.
— Comprou lençóis novos?
— Mamãe mandou de presente. Chegaram ontem. Esqueci de contar. Não são lindos?
— São.
— A velha tem gosto — Ema disse, enquanto se despia em frente ao espelho.
Bárbara imitou-a.
— É muito bonita — Ema reconheceu. Cintura fina, pele sedosa, busto rosado e um dorso infantil. Porém, ela não perdia em atributos, igualmente favorecida pela sorte. Louras e esguias, seriam modelos fotográficos, o que entendessem, em se tratando de usar o corpo — não é, Bárbara? — Decididamente perdi o campeonato. Em matéria de tamanho os seus seios são maiores do que os meus — a outra admitiu, confrontando.
Carinhosa, Ema acariciou as costas da amiga, que sentiu um arrepio. — O que nãosignifica nada, de acordo? — deu-lhe um beijo.
— Credo, Ema, suas mãos estão geladas e com este calor… — É má circulação.
— Coitadinha — Bárbara esfregou-as vigorosamente. — Você precisa fazer massagens e exercícios, assim — abria e fechava os dedos, esticando e contraindo na palma. — Experimente.
Eram tão raros os instantes de intimidade e tão bons. Conversaram sobre as crianças, os maridos, os filmes da semana. Davam-se maravilhosamente — Bárbara suspirou e se dirigiu à janela: viu telhados escuros e misteriosos. Ela adoraria ser invisível para entrar em todas as casas e devassar aquelas vidas estranhas. Costumava diminuir a marcha do carro nos pontos de ônibus e tentar adivinhar segredos nos rostos vagos das filas. Isso acontecia nos seus dias de tristeza. Alguma coisa em algum lugar, que ela nem suspeitava o que fosse, provocava nela uma sensação de tristeza inexplicável. Igual à que sente agora. Uma tristeza delicada, de quem está de luto. Por quê?
— Que horas são? — Ema escovava o cabelo. — Imagine, onze horas. Tenho que sair correndo.
— Que pena. Não sei por que fui pensar em hora. Fique mais um pouco.
— É tarde, Ema. Tchau. Não precisa descer.
— Ora, Bárbara… deixa disso — levou a amiga até o portão.
— Boa noite, querida. Durma bem.
— Até amanhã.
Ema examinou atentamente a sala, a conferir, pela última vez, a arrumação geral. Reparou na bandeja esquecida sobre a mesa, mas não se incomodou. Queria um minutinho de… ela apreciava tanto a casa prestes a adormecer — apagou as luzes. A noite estava clara, cor de madrugada — pensou, sentando no sofá. Um sentimento de liberdade interior brotava naquele silêncio. Um sentimento místico, meio alvoroçado, de alguém que, de repente, descobrisse que sabe voar. Por quê?
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