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O rio
Mississipi!
Aguas salgadas pelo negro suor dos algodoais.
Rio/Sangue , artéria a serpentear a América do trabalho.
Rio da terra fértil, dos músculos retesados e de costas sob o sol.
Rio das belas e tristes canções.
Óh! Geórgia on my mind. Oh sweet Georgia.
Das tuas margens,
avistamos toscas embarcações num eterno balanço.
Um bate-bate de águas encrespadas pelo vento.
E ouvimos longe, sons graves que escapam da garganta de um negro.
Lamento e musica que se fundem aos acordes do banjo.
Hey man! Heeyy man!
Trilha fluida. Transportador de melodias ofegantes, cantadas aos berros.
Hollers, Work Songs, trágicos sons dos pilares da América.
Nas tuas margens de lodo e caniço,
vemos a lâmpada pálida de um bordel que ilumina a noite solitária.
Um negro desdentado corteja a dançarina.
Ela tem rosto e roupas que são puro escândalo.
Ele solta a voz gutural e martela num piano divinos strings e harmonias improváveis.
Whisky e perfume barato. Mulheres dançam.
Está a modesta igreja de madeira, com a cruz no frontispício
e bancos rigorosamente alinhados.
Numa ensolarada manhã de domingo, um pastor entoa hinos e preces.
Do seu peito brota o gospel aprendido nos casebres do Alabama.
Rio Tigre e Eufrates, Nilo,
rios irmãos, de antiquíssimas civilizações,
testemunhas do eterno arrastar de pés,
destino inescapável da humanidade.
Sabe-se que tuas aguas, Mississipi,
testemunham também essa humanidade peregrina e desamparada,
que trilha novas terras e as farturas inalcançáveis aos teus filhos escravos.
Rio Tejo, Arno, Sena,
rios de aldeias medievais da Europa Cristã e das sofridas cruzadas,
viram o parto de um Ocidente desbravador das novas terras.
Mas só tuas aguas acorrentadas Mississipi, cantaram e cantam as glórias e os grilhões do novo mundo.
O homem
Ei patrão!
Do silvo do chicote cortando ar e pele.
Das rubras e profundas fendas escavadas em meu dorso.
Dos intermináveis dias curvados sobre a terra
(húmus, humilde, homem).
Extraí do chão a riqueza que entreguei a ti.
Noites mal dormidas em promiscuas senzalas,
Esse navio negreiro redivivo,
atracado para sempre em terra firme.
Infame e bruto.
Vivi imerso em cheiros nauseabundos de dejetos e secreções.
Minhas mãos, negras e escravas, dedos entroncados e olhar de medo,
entregaram-te, a branca polpa do algodão colhido.
Mãos valentes que empunharam arcos e lanças,
nas vastas planícies africanas de tempos imemoriais,
seguram hoje,
enxadas, ancinhos. Ou nada.
Mas príncipes e guerreiros de reinos negros extintos vivem ainda no meu peito e na minha voz.
E sob o vasto céu, azul e triste, em que vivo, te ofereço:
azul/tristeza/blues.
Arranquei sons golpeando cordas do violão,
Minha resposta à chibata cruel.
Do mergulho ao fundo, nos pântanos do mundo e da vida,
trouxe para ti,
a mais bela e pura flor sonora.
Empunho a viola tosca que dedilho com amor e perícia.
E da cadencia que brota, entre acordes e lamentos,
te ofereço minha musica,
amalgama de ódio e dor,
de olhos que viram o terrível,
do corpo que compartilhou o horror.
Fervilham no meu coração sentimentos e aprendizados,
de deuses pagãos e de amor cristão.
Don’t you mind people grinin’ your face.
O Cantores
Um negro alto e magro, num terno branco de inesperada elegância,
Uma mulher gorda de vestido vermelho e rosa no cabelo
Um salão qualquer de uma rua qualquer de New Orleans, Memphis ou Nashville, não importa.
O som estridente e martelado do violão abre a noite.
A voz rouca da mulher, algo como um grito e oração,
se espalha pelo pequeno salão.
Os que ouvem as notas, os timbres, os tons múltiplos sabem que nesse momento, compartilham da mesa de deuses.
Blues!
A música nascida entre os homens e mulheres mais desvalidos da terra.
Lado pobre e feio da América endinheirada.
Nos cabarés, nas esquinas, becos úmidos
Entre corpos maltratados e alma em carne viva,
florescem intensos acordes e notas.
E paixões cruas, expressões de desejos brutos,
Do amor primitivo, que acontece num jato, sem o tempo da maturação e da razão.
Histórias cruas e viscerais que misturam beijos e sangue,
a caricia sincera e o soco que sucede ao afago.
A mulher desejada que se conquista ou perde,
na ponta da faca, no cheiro da pólvora, nas mãos sobre a ferida quente.
Nessas frestas do mundo, sem o certo e sem o errado.
Onde a lei é o instinto bruto e a vontade sem freios,
o som sincopado, simples, não deixa duvidas.
Mais que musica é forma de viver,
é pegar a vida pelo chifre e torcer destinos.
Numa casinha ao lado de um carvalho enorme,
perdidos numa fazenda empoeirada que já conheceu dias melhores,
um homem afina o violão e começa a tocar.
A mulher sai para o alpendre e canta.
Canta o que vê à volta, o que viu acontecer nos últimos dias,
uma história que ouviu de um vizinho,
uma noticia triste qualquer
Fez-se o Blues!
Crônica da vida simples, dos acontecimentos miúdos transmutados em som e arte.
A Música
Nos fins de mundo da América profunda,
onde vidas e lendas se misturam.
Arrivistas, bandidos, infames, bêbados, os tortos de corpo e alma,
arrastam seus dias entre tiros e brigas, empapando a terra de sangue e lagrimas.
É onde vive Staglee o mais cruel dos assassinos.
Ele matou um homem por causa de um chapéu.
That bad man, oh cruel Stack O’ Lee
Billy the Lyon told Stack O’ Lee,
“Please don’t take my life. I got two little babies, and a darlin’ lovin’ wife”
That bad man, oh, cruel Stack O’ Lee
“What I care about you little babies, your darlin’ lovin’ wife?
You done stole my Stetson hat. I’m bound to take your life”
Essa gente do Blues!
Essa gente que guarda sem saber tesouros imemoriais.
Essa gente que mergulha nos poços de sombras,
percorre os largos campos que nascem os mitos.
Abrem as portas de ferro e libertam mil demônios
Que se atiram vorazes nas gargantas
Há mistérios nesses acordes,
nessa vibração das cordas.
Como o bater de um tambor ancestral, invocador de divindades,
como um sentimento escondido nas dobras da alma,
profundo e denso.
Há mistérios nessas vozes.
Nesses tons que parecem recolher migalhas de tempo e vida.
Como se toda a história humana fosse contada num sopro
Como se todo o peso e a beleza de viver fossem expressos
Nessas repetições monossilábicas
YEEEAH! OH OH OH OH BOOM BOOM!! OH MA BABY!
Nessas infinitas repetições de som e silencio chamada musica
Nessa língua dos anjos que homens ousam pronunciar,
vibram corações e mentes.
Nesse mundo de sensações e pensamentos chamado blues,
tudo se anima para contar os amores e dores de um punhado de homens e mulheres.
À vastidão desértica chamada vida, emprestou um sentido:
Preencher com pequenos momentos de rara beleza o que mundo nos dá.
Robert Johnson, que força estranha liberou suas mãos!
Bessie Smith, de onde vem sua voz?
Sone House, de onde nasce sua indignação transformada em arte?
Oh! Blues,
Que peregrinou indignado entre catadores de algodão.
Teu destino o fez nascer em meio a essa grande confraria humana,
encerrada em salões esfumaçados,
entre mesas de carteado, prostitutas e bêbados.
Onde pecadores sem remissão transbordam alegria.
Teu destino o fez alegrar almas.
Com as mãos generosas de quem sabe o segredo da vida,
nos aponta o caminho da redenção e alegria.
Blues, a sua história é a história dos homens.
Definitivamente enterrados em suas dores.
Mas, como só eles, capazes de sair de lá,
cabeça erguida, coração purificado e alcançar os céus.
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