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Não demorou e Alice Guy ousou pedir a Léon Gaumont para usar o estúdio da empresa para fazer filmes. Ele permitiu e apoiou-a de imediato e ao longo da sua carreira como cineasta.
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Já nos primeiros filmes, ela criou inovações técnico-estéticas. Na montagem, usou a tela dividida; filmou em plano close up; fez uso de som sincronizado; pintava os objetos de arte à mão; criava efeitos especiais; e filmava não apenas em estúdio, mas também em locações naturais. Outro elemento chave, é que Alice pedia aos atores para agirem naturalmente e não posarem para a câmara (algo usual pelos homens cineastas desta época do cinema mudo, o cinema falado surge em 1926). Não por acaso, na parede da sua produtora estava escrito Be Natural.

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Alice foi a primeira mulher a CRIAR e a GERIR a sua própria produtora de cinema, a Solax Company.
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Em 1907, ela casa-se com Herbert Blaché Bolton e mudam-se para os Estados Unidos. Em 1910, regressam a Paris e ela passa a ser conhecida como Madame Blaché ou Alice Guy-Blaché. Dois anos depois nasce a sua filha, Simone (ela teve outros filhos, o último quando tinha 38 anos).
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Ter filhos não impediu Alice de continuar a ser cineasta. Num tempo em que poucas mulheres trabalhavam fora de casa, ela era Realizadora de Cinema.
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O primeiro filme que Alice realizou na Solax Company foi a comédia Mixed Pets,1911.
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Empresa que ela vai gerir e dar continuidade nos EUA, junto com o marido.
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País onde ela relata que não tinha dificuldade para conseguir recursos para fazer filmes, diferente da França, seu país de origem.
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Em 1917 foi convidada para fazer uma conferência e exibir alguns dos seus filmes na Columbia University.
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Neste período em que viveu nos EUA, o marido levou a Solax à falência em 1922, e se divorciaram. Alice regressa a França com os filhos e sem dinheiro, numa era entre guerras mundiais.
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Em França, ela não conseguiu mais trabalho, o que dificultou a sua sobrevivência.
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A sua filha Simone começou a trabalhar no cinema e foi quem sustentou a mãe nos seus últimos anos de vida.
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Alice Guy-Blaché foi uma mulher à frente do seu tempo, destemida, e não se intimidou pelo patriarcado.
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Acreditava que não havia nenhuma função na indústria do cinema que uma mulher não pudesse ocupar tão bem quanto os homens.
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Ela filmou em França e EUA (além de outros países europeus); ocupou uma posição profissional exercida por uma maioria masculina, contudo o seu nome foi apagado da história do cinema pelo simples facto de ser mulher. Uma mulher roteirista, produtora, montadora, realizadora, e criadora/gestora da sua produtora de cinema. Tudo isto era uma afronta para os homens da Sétima Arte.
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A Gaumont permitiu que Alice Guy filmasse no seu estúdio (o maior estúdio do mundo da época) e distribuiu os seus filmes. Ela o ajudou a construir e a projetar o Estúdio Gaumont.
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Do final dos anos de 1800 até os anos iniciais de 1900, os filmes dela fizeram sucesso em França, mas George Sadoul, um jornalista renomado, crítico e historiador do cinema, no seu primeiro livro sobre a história da Gaumont, entrevistou muitas pessoas, e ignorou Alice.
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Um novo capítulo da história da Gaumont foi contado após a segunda guerra mundial, quando Léon Gaumont já havia falecido (em 1946). Desta vez Sadoul, em Les pionniers du cinéma, credita Alice como “chefe das produções da Gaumont, onde também realizou filmes”. Porém, equivocadamente, creditou alguns dos seus filmes a homens que trabalharam com ela.
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Que descaso e desrespeito!
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Homens do passado e do presente negam a importância e qualidade dos filmes que Alice Guy-Blaché realizou. Silenciaram o poder desta mulher.
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Estima-se que a cineasta realizou cerca de 1000 filmes ao longo da sua carreira (1896-1920), poucas longas-metragens, a maior parte curtas ou médias, documentários, ficções, dramas e comédias inteligentes. Ela escreveu, produziu, montou e realizou os seus filmes, cuja temática envolvia questões familiares, sociais, migração, direitos e conflitos laborais, entre outros.
E esteve atenta às questões e desigualdades sociais, sexuais e raciais do seu tempo.
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Quando filmou nos EUA, contratou atores negros, num tempo em que havia segregação racial no país. E na comédia “Les resultats du féminism” (1906), salienta a desigualdade entre os sexos.
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E em “Making of an american citizen“, 1912, ela retrata a violência contra as mulheres.
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Na França teve que enfrentar o machismo para se posicionar como cineasta. Todavia, Léon Gaumont valorizou-a e agradeceu-lhe em privado e publicamente pela sua enorme contribuição para o sucesso da empresa. Foi Alice quem dirigiu os primeiros filmes da Gaumont.
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O último filme que a pioneira do cinema fez foi “Tarnished Reputations“, 1920.
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Grande parte de seus filmes foram se decompondo (por causa do nitrato, material que demanda muito cuidado de conservação e é inflamável), pois não foram devidamente conservados, ou foram destruídos (por funcionários desavisados, como relata o filho de Léon Gaumont no filme de Pamela B. Green), ou desapareceram. E os filmes que sobreviveram, estão na mão de colecionadores ou de instituições de cinema, museus dos EUA e Europa. Alguns foram restaurados, outros ainda estão por serem encontrados e cuidados.
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Neste link podem ser vistos alguns dos filmes de Alice Guy-Blaché.
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Alice Guy-Blaché é uma mulher cineasta fundamental para a história do cinema e os homens cineastas da sua época não quiseram reconhecer a sua importância.
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A história do cinema precisa ser REcontada, REvista, REescrita.
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Felizmente ainda em vida, quando escrevia a sua própria autobiografia, Alice pôde corrigir alguns erros, equívocos ou injustiças sobre a sua história enquanto cineasta.
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A história de Alice Guy-Blaché tem se tornado conhecida mais recentemente e mundialmente, seja através de livros ou do cinema, o filme de Pamela B. Green contribui para isto.
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Alice faleceu em 1968 nos Estados Unidos (New Jersey).
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Oito anos depois, La fée-cinema: l’autobiogrphie d’une pioneire, livro das suas memórias, escrito por ela própria, uma autobiografia póstuma, foi publicada em França.
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Ela tentou publicá-lo em vida, mas não houve interesse das editoras.
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Existem também outros livros sobre ela, como The Memoirs of Alice Guy-Blaché, 1986, de Roberta Blaché e Alice Guy Blaché: Lost Visionary of the Cinema, 2003, de Alison McMahan.
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Apesar da sua autobiografia e das correções em outros textos já publicados sobre ela, muitos homens ainda duvidam de Alice enquanto cineasta e desclassificam o seu trabalho.
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É preciso atentarmos a quem conta as histórias, pois em geral são as vozes dominantes.
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Este filme de Pamela dá uma nova vida a Alice e ao seu cinema, uma mulher esquecida, ignorada pela indústria que ajudou a criar. Alice existiu, contribuiu e faz parte da história do cinema!
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Para construir/reconstruir a história de Alice Guy-Blaché, a realizadora Pamela B. Green conversa com membros da família da pioneira da Sétima Arte, com produtores, realizadores, atores, curadores, académicos, historiadores, teóricos, etc., estabelecendo um diálogo comovente e surpreendente entre eles. Green vasculhou arquivos privados e públicos, usou de modo singular as imagens de arquivo (e também as imagens filmadas), inclusive trechos de entrevistas com Alice e com Simone, e cenas dos filmes da primeira mulher cineasta. Ela cruza factos e vozes numa montagem cheia de vigor e mobilidade. Em “Be Natural: A história nunca contada de Alice Guy-Blaché, a realizadora também contextualiza a situação sócio, histórica e política do período que Alice viveu e trabalhou no cinema.
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Alice Guy-Blaché abriu caminho para outras mulheres do cinema, tais como Lois Weber, Frances Marion e Dorothy Arzner, mas isto é assunto para outro texto.

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TRAILER de Be Natural: A história nunca contada de Alice Guy-Blaché, realizado e editado por Pamela B. Green. Duração de 1h43min. Disponível na FILMIN. Filme exibido e premiado em vários festivais de cinema do mundo, adquirido pela Zeitgeist Films em associação com a Kino Lorber e lançado em salas comerciais em 2020.

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Para quem tiver interesse, há também outro filme sobre Alice Guy-Blaché: “The Lost Garden: The Life and Cinema of Alice Guy-Blaché“, 1995, de Marquise Lepage.
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Em 1953 Alice foi homenageada pelo governo francês com a Légion d’Honneur, mas o seu cinema já estava esquecido pelo público.
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Destaco ainda que, em Paris, nos arredores do parque Buttes Chamont, podem ser encontradas, visitadas algumas locações dos filmes de Alice: na entrada do parque, na Rue Compans e na ponte sobre a Rue de Crimée.
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Nesta zona, durante anos e anos, funcionou o antigo e primeiro Estúdio da Gaumont. Estúdio onde Alice Guy-Blaché produziu e realizou muitos filmes, sendo o primeiro, “Esmeralda, 1905“, baseado na obra “O corcunda de Notre Dame de Victor Hugo” (filme ainda não localizado).
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A Gaumont, fundada em 1895, é a empresa de cinema mais antiga do mundo ainda em atividade.

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 Lídia Ars Mello é Doutora em Cinema. E autora dos livros Do cinema de Béla Tarr (2019) e Autoritarismos no Brasil: O olhar de dez realizadoras brasileiras contemporâneas (2022). Texto reproduzido da revista C7nema Net