Conto publicado no livro “Todo o Sangue”. Reproduzido na revista Escrita e no site Guatá.
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O jornalista e escritor Fábio Campana (1947-2021) – Foto: arquivo da família
. Aqui o sepulcro da história. Eis os desaparecidos, os que saíram de cena, os que adotaram outro nome, os que mudaram de rosto e ressurgiram dos mortos. Aqui não há o que temer. Estão ocultos os registros pessoais do pecado, da rebeldia, dos atentados, das guerras e da perseguição. Aqui foi limpo o sangue dos crimes da paixão. Ninguém deve perguntar a origem dessas cicatrizes lívidas, da marca que a navalha deixou na face ou onde e quando se desmembrou um braço ou uma perna. A fronteira é o território ambíguo, o espaço dissimulado. Um pacto protege a todos. Véu de silêncio que encobre o ódio, as desonras, as infâmias e as vinganças que corroem as entranhas. Desde sempre, desde o início, por aqui desfilaram os sonâmbulos em busca de grandeza e fortuna rápida. Em seu rastro, miséria e destruição. Aqui passaram fugitivos de todas as revoluções. . Aqui foram vistos ao amantes criminosos, os ladrões do império, os que perderam a razão. Nesse lugar se esconderam aqueles que já não podiam viver em sua casa por motivos que a ninguém interessa e que só serão revelados no juízo final. . Essas histórias serão conhecidas apenas quando declaradas inofensivas pelos interessados ou quando se transformarem em lendas de personagens extintos, ressalvando-lhes a honra e a glórias. Aqui, no universo móvel, no espaço fluindo da fronteira, a primeira lei, a regra de ouro: cada um é responsável pelo seu próprio fantasma, dono de seu sonho e sua frustração, pastor de seus demônios. Outro não pode dispor de seu passado ou escrever sua história. . Exemplo desses personagens fantásticos era Kid Chocolate, um negro para mais de dois metros. Altura de príncipe etíope, massa muscular de Cassius Clay e elasticidade de felino. É a figura guardada na memória certamente traída pela admiração da infância. Não só a minha, mas a de tantos outros que o conheceram e asseguram que ele poderia ter galgado posições mais importantes no ranking nacional. Kid era campeão dos pesos-pesados da Marinha. No ringue improvisado de Foz do Iguaçu demoliu todos os adversários. . Derrotou, inclusive, a famosa Mulher Pantera, que por lá apareceu como atração principal de um circo e desonrou, a golpes de jiu-jitsu, todos os varões briguentos que ousaram enfrentá-lá. Quando o orgulho machista entrou em crise, Kid Chocolate foi convocado. De pronto recusou. Não poderia lutar com alguém de categoria menor, que não era boxeur e, além de tudo , mulher. Acabou cedendo aos apelos unânimes. . Não decepcionou. Em poucos segundos, liberto das cerimônias, aplicou um cruzado de esquerda, seu golpe mais forte, no queixo da Pantera. Foi carregado em triunfo. . O bom Kid Chocolate foi parar na fronteira na condição de punido. Era assim. Foz do Iguaçu foi o exílio involuntário para militares insubordinados, funcionários relapsos, padres licenciosos e freiras que desrespeitavam o voto de castidade. . Um grupo humano interessante, de qualidades associadas à inteligência e à ousadia. Insubmisso, inconformista, irreverente. Gente que veio de todo o Brasil para se encontrar, literalmente, no fim da linha. Somados aos imigrantes de todo o mundo. Além dos vizinhos argentinos e paraguaios, éramos árabes, judeus, italianos, alemães, gregos, poloneses, russo, hindus, chineses, japoneses, armênios. Babel de línguas e segredos. Confusão de hábitos, costumes e culturas totalmente diversos. Muitos deles escolheram viver na fronteira por alguma razão especial guardada no passado. Procurando recomeçar a existência no limite do sonho, no limite das esperanças, no limite do país.
Avenida Brasil, em Foz do Iguaçu, 1965 – Foto: acervo Ibge
. Minha cidade tinha uma avenida, algumas ruas e duas fronteiras. Do outro lado dos rios, Argentina e Paraguai. Ou melhor Porto Aguirre e Porto Franco. Cidades parecidas em sua provisoriedade. Idênticas em seu abandono. Ruas poeirentas, casas rústicas de madeira, pintadas de amarelo com barras vermelhas, cercas de ripas pontiagudas. Longe das metrópoles. Distantes dos governos. Isoladas no centro do continente. Nossos vizinhos, os castelhanos, conviviam conosco em terna solidariedade de povoados esquecidos. . Três lugarejos compartilhando a mesma solidão e os mesmos negócios: o contrabando, a madeira e os comércios da sobrevivência. A monotonia só interrompida por pequenos bandos de esforçados turistas que vinham conhecer nosso maior orgulho local, as Cataratas do Iguaçu. Aqui desfilaram projetos de grandeza e fortuna fácil. O restante era acessório. A grilagem de terra, o pequeno comércio e as demais funções públicas. Na fronteira tínhamos todas as instituições para proteger o que os professores chamavam de último torrão de solo pátrio. O exército, a marinha, a aeronáutica, o judiciário, a polícia, a fiscalização de rendas, os correios e telégrafos, agências de navegação, igrejas, tudo o que representasse o Estado, a burocracia e as religiões. Assim, também éramos três comunidades de funcionários, armados ou civis, em permanente modorra, esperando passar o tempo, esperando a aposentadoria. Que guerras não havia, nem ameaças. O perigo de uma invasão argentina povoava de preocupações, planos e estratégias uma única cabeça , a do tenente-coronel Medeiros, da infantaria, comandante do Batalhão. . Não era homem brilhante. A carreira tropeçou nos exames da Escola de Estado-Maior afastando-o das quatro estrelas do generalato. O comando em Foz do Iguaçu era seu último posto, sua última oportunidade. Daí em diante só poderia ascender por méritos, em caso excepcional, no cenário de um conflito. Mais que um temor, a guerra era um anseio pessoal. Com o passar do tempo aprendeu a tornar modestas as suas expectativas. Em seus devaneios, atordoados pelo desejo de glória, já não esperava muito. Bastava uma escaramuça, um incidente de fronteira , contanto que fosse um enfrentamento oficial. Dispensava os mortos. Alguns feridos seriam suficientes. O importante era a oportunidade de conter invasão, tomar armas e bandeiras, vencer o confronto e demostrar seu heroísmo. Imaginava-se desembarcando no Rio de Janeiro, a capital da República, transportando troféus e recebendo a merecida promoção. . A sorte não lhe ajudava. A fronteira insistia em ser pacífica. Conflitos, apenas os domésticos, de cada país. Os laços de amizade só trepidavam em dias de futebol, quando seleções nacionais se enfrentavam. Desaparecia o princípio do pan-americano tão louvado nas escolas. Nosso coronel Medeiros transformava os preparativos locais para acompanhar o jogo em grandiosa operação de guerra. Para evitar tumultos, todos em seus países. Portões fechados, barreira erguidas, as forças armadas em prontidão. Era possível vê-lo em seu jeep, o corpo muito magro, pequeno, vestido com o uniforme de campanha , capacete enterrado na cabeça, dando ordens em todos os quarteirões. Depois, ele próprio se sentava no Bar Central, para ouvir a transmissão. . Enquanto ouvia a escalação, já cercado pela pequena multidão que lotava o bar, o Coronel Medeiros repousava sobre a mesa seu revólver 45, esfregava as mãos e, com evidente espírito belicoso, comentava: . – Hoje vamos acabar com os gringos. . Sempre havia quem discordasse, apenas para provocá-lo: . – O João Saldanha diz que vai ser uma parada dura, coronel. . Era a senha para deflagrar a crise de irritação. Colérico, subia na cadeira e vociferava os argumentos mais irracionais. . – O Saldanha não entende nada de futebol. É um cretino. E além do mais é comunista, um ser antipatriótico, que provavelmente está torcendo contra o Brasil. Eu tenho sérias desconfianças de que ele é um argentinista, um infiltrado, um quinta-coluna. Vocês já viram como ele gosta de elogiar goleiro argentino? Prova final de incompetência do Saldanha para tratar de futebol: ele é botafoguense e isso basta. . Só se acalmava quando iniciava o jogo. Ditava as regras com seu forte sotaque carioca . Exigia silêncio absoluto. Vibração exagerada só quando a bola não estivesse em campo e no momento dos nossos gols. Não admitia comentários a não ser o dele, os únicos que considerava pertinentes e necessários. . O sentimento patriótico ressurgia forte. A seleção era o Brasil, a pátria em chuteiras de Nelson Rodrigues. Ouvidos antenados no rádio, tensão evidente, acompanhávamos emocionados os lances do jogo. Contra a Argentina a rivalidade era maior. Não só pela influência do coronel. Era o adversário mais perigoso, de rixa antiga e de poucos países que tinham saldo de vitórias positivo contra nós.
Porto Oficial, em Foz do Iguaçu, na primeira metade do século XX. Foto: Harry Schinke.
. Terminada a catarse, contidas as emoções , apagados os ânimos, o mundo retornava a sua placidez. Nós, a garotada, éramos campeões mundiais. De 1958 a 1966, até perdemos na Inglaterra, foram 8 anos de superioridade. Nem sempre confirmada em nossas próprias peladas. Mas as derrotas nos campinhos de cá, nos potreros de lá, ainda que ferissem profundamente nossas susceptibilidades, eram de menos. O orgulho nacional estava salvo por Gilmar, Djalma Santos, Bellini, Orlando e Nilton Santos. Zito e Didi. Garrincha, Vavá, Pelé e Zagalo. . Alheia ao furor nacionalista do coronel, a fronteira vivia suas próprias regras de convivência. O contrabando de café em ascenção. O Paraguai, que não tinha uma planta, multiplicava a produção. De lá o café era vendido sem impostos, com lucros máximos. Também crescia a exportação de madeira e estabeleceu-se o rodízio das putas. Essa última, uma feliz idéia precursora dos objetivos do Mercosul. Dona Maria Semcalça, a principal cafetina da época em Foz do Iguaçu, visualizou a necessidade e as vantagens da integração e complementação dos mercados. Uma única reunião de cúpula com suas congêneres internacionais e, sem intermediação de chancelarias, passou a funcionar o rodízio de meninas. Nenhuma delas ficava mais do que quatro meses no mesmo país. Para um negócio que necessita de constante renovação de estoques, sob pena de cansar a imaginação dos clientes, foi mais que perfeito. . A cada quatro meses, novidades. A Cida voltou, estava mais enxuta. Viu a Teresa? Cresceram os seios. É lamentável que estejam mortos os que tinham boa memória desses feitos e sua importância para o engrandecimento da cultura e da amizade entre os povos. Produtiva foi a troca de experiências, asseguravam. Famosa ficou a escola argentina, considerada exatamente liberal para a época. Dignificante a pedagogia paraguaia, impositora de disciplina surpreendente. As meninas aprenderam muito nessa comércio. Perigo de intensificação da transmissão de doenças? Sim, mas nessa época não existia nada que uma série de Benzetacil não curasse. . Nós, os mais novos, tínhamos notícia, muita curiosidade, mas nos vedavam a experiência. Quantas vezes rondamos as cercanias do Bar e Dormitório Café e Leite para observar a simpática comunidade de mulheres que nas tardes de calor apareciam desnudas no pátio? Gordas, flácidas, longe de representar o ideal de beleza que nos conduzia regularmente ao cinema: o rosto de Elizabeth Taylor, os seios de Gina Lollobrigida, as coxas de Claudia Cardinale. Ava Gardner, meu Deus! Mesmo assim, tão desejáveis. Éramos um bom grupo de voyeurs, no cinema ou na vida, vagando à noite pelas ruas à procura de fresta, de uma janela iluminada que desvendasse um corpo, qualquer vulto distante era uma esperança. . No caldo de cultura da fronteira não tem história quem não experimentou o ódio vivificador. É nada quem não alimenta o desejo de marcar a passagem. É nulo quem não cultiva uma paixão enlouquecida. O mito da ousadia e do inconformismo necessário e saudável. Meu avô nos levava para conhecer os lugares de sua fé. Para lembrar seus heróis suspensos no tempo, libertos da memória oficial. Onde hoje há esse porto passou o náufrago Aleixo Garcia, primeiro branco a chegar ao Peru, antes de Pizarro, em 1524, massacrado quando retornava com amostras de ouro e prata. Aqui morreram Pero Lobo, o Bacharel de Cananéia e oitenta homens entre arcabuzeiros e besteiros que sonhavam a mesma aventura. . Golpeados a tacape, assados e deglutidos na margem do Rio Paraná. Por aqui passou Cabeza de Vaca, o descobridor sobrevivente, em 1549, assustando os índios com seus monstros, cavalos vermelhos e alazões; seus duzentos homens armados de ambição, escopetas e bestas; com suas peças de fogo, semideuses que dispunham do raio e do trovão. Por aqui passaram os pioneiros que transitavam do litoral a Assunção pela trilha de Peabiru, sonhando com o ouro dos incas. Aqui viviam os guarnis mais hostis e rebeldes, depois apascentados pelos jesuítas. Os bandeirantes invadiram esse mundo teocrático e o destruíram. Por esses rios retornaram doze mil índios em fuga, liderados pelo padre Montoya. Alcançaram o sul onde sobreviveram em Tapes e nas novas missões. Muito mais tarde voltaram os povoadores. A Colônia Militar, os acampamentos das companhias que comerciavam o mate e a madeira. Por aqui passou a coluna Prestes, que acampou na beira do Rio Tamanduá, depois de lançar pânico e terror sobre a cidade. Alguns não queriam luta, muito menos marchar milhares de quilômetros. Ficaram e foram acolhidos pelo silêncio.
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