Fernanda Ribeiro, autora de “Lembrança” – Foto: divulgação
O livro era velho, já com décadas de existência.
Folhas amareladas e manchadas. A impressão apagada em algumas partes do texto. Rasgos, aqui e ali. Cheirava a mofo e poeira. Não era grande, nem extenso, sequer importante. Um qualquer entre tantos outros da Biblioteca Pública, no meio de estantes com diferentes títulos.
Um dia, fizeram confusão e lhe colocaram em outra seção — Arquitetura e Urbanismo. Por muito tempo, ninguém percebeu ou deu falta — é mais comum do que se imagina tal acontecimento. Imaginou estar destinado a cair no esquecimento para sempre, porém enganou-se: uma criança apareceu, procurando-o. Não uma, nem duas ou três vezes. Foram várias; incontáveis. No registro do sistema da biblioteca constava o exemplar como disponível, logo poderia consultá-lo e emprestá-lo. O problema é que nenhum dos funcionários conhecia o paradeiro do tal livro e, a cada visita da menina, a frustração aumentava, de pouquinho em pouquinho. O ápice foi quando decidiu procurar, sozinha, em cada uma das estantes, até o achar. O acervo, grande demais, não intimidou a pequena garota. Quando há determinação, nem mesmo os pesares da realidade são capazes de abalar uma convicção sólida.
E ela chegou perto, muito perto, de finalmente encontrá-lo, desfazendo a confusão acidental, mas justo quando mais deveria estar atenta, dormiu tarde na noite anterior e não reconheceu a lombada vermelha ao passar os olhos na sessão em que o livro foi erroneamente deixado.
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Após isso, em um par de dias, não retornou a aparecer nas terças-feiras. Sumiu. Os bibliotecários, vez ou outra, se recordavam da menina, indagando-se das razões de ter abandonado a busca incansável do exemplar perdido. A resposta para tais perguntas nunca foi respondida.
Anos e anos correram, o livro perdeu completamente qualquer esperança. Só para, numa reviravolta do destino, de repente ser retirado da prateleira por um estudante de Arquitetura. Ao chegar no balcão e notar o erro, entregou-lhe para o bibliotecário devolvê-lo ao devido lugar. O homem mais de idade, digitando o nome do exemplar no sistema, surpreendeu-se. O livro misterioso finalmente na estante correta, junto de seus primos de igual gênero. A fofoca se alastrou e pensaram imediatamente na (já não mais) criança que outrora o procurava com tanto afinco. Utilizando o cadastro da biblioteca, entraram em contato. O retorno custou a vir, embora positivo. Assim, o velho e maltratado livro ficou no aguardo do ansioso encontro, pois iria descobrir o motivo de ser tão requisitado por aquela humana.
Não mais uma criança, a mulher adulta que o segurou com tanto cuidado, tal qual fosse a maior preciosidade no mundo, abraçou-o com lágrimas emocionadas de quem conquista um sonho. Ele, também, chorou — do seu próprio jeito. Enrolado em um tecido macio, quase aconchego, foi carregado gentilmente nos braços da humana. Não para uma casa bonita, com diversas plantas e cheiro bom saindo da cozinha, como imaginou. O lugar era inusitado, caminho de pedras, diversas lápides, enfileiradas. Cemitério. A moça ajoelhou-se diante de um túmulo com flores brancas frescas. Um nome escrito, embaixo duas datas. A voz dela, ao quebrar o pesaroso silêncio, era envolto da dor do luto e um alívio profundo.
“Oi, mãe. Eu consegui. Encontrei o livro que a senhora gostava de ler quando era criança e eu nem sonhava em nascer. A história que você sempre quis me contar na hora de dormir, e jamais pôde. Achei justo vir aqui e…. fazer por você o que não fez, por mim.”
Abriu com amor o livro antigo, de páginas envelhecidas pelo tempo. Respirou fundo e começou a leitura, esperando que suas palavras, de algum jeito, pudessem alcançar a mãe querida.
“Há muito tempo, quando ainda não existia nem dor, nem sofrimento, Aurora desceu dos céus e veio ao mundo. E, no dia em que nasceu, as estrelas dançaram em reverência, enquanto o sol demorou-se a surgir, tornando o amanhecer belo e repleto de cores, como se anuncia que uma pessoa cheia de amor, agora andava entre nós, humanos…”
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