Nahla apresentando painel sobre o ensino de Português para surdos – Foto: arquivo pessoal /Nahla Yatim
Por Denise Paro, especial para Guatafoz Quando tinha pouco mais de um ano, Nahla Yatim brincava com um primo; um tio e a mãe se aproximaram e chamaram pelas crianças. O primo respondeu, exceto Nahla que ficou parada, no mesmo lugar. A atitude ligou um sinal de alerta na família. Preocupada, a mãe levou a filha de um ano e meio de idade para fazer uma consulta. E assim foi descoberta a surdez.
A menina cresceu, enfrentou diversos problemas que uma pessoa surda passa. Mas agora pode comemorar a superação de barreiras e conquistas na vida. Hoje, aos 35 anos, Nahla trabalha como professora e cursa doutorado na Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste).
Foi logo pequena que a Nahla começou a frequentar a Associação de Pais e Amigos dos Surdos de Foz do Iguaçu – APASFI, aconselhada pelo médico que diagnosticou a surdez de nascença. Pela manhã, ela estudava na APASFI e a tarde, da 1ª. a 4ª. série, no Colégio Estadual Parigot de Souza.
LEIA TAMBÉM: Terezinha Vera, a educadora iguaçuense que acolheu os surdos Lucimar, uma das primeiras alunas na escola da Apasfi
Naquela época, a APASFI ainda não trabalhava com a Língua de Sinais Brasileira – Libras até porque não havia legislação exigindo. As metodologias existentes eram a da oralização e língua de sinais. Alguns professores da APASFI eram os mesmos do Parigot, o que facilitava a vida dos surdos.
A vida ia indo até razoavelmente bem, até que chegou a hora de cursar a 5ª. série. Nahla passou a estudar no Colégio Bartolomeu Mitre com o reforço da Apasfi, que era obrigatório. No Mitre, as dificuldades foram maiores porque não havia intérpretes em sala de aula e acessibilidade.
Ser diferente muitas vezes tem um preço alto. E Nahla e os amigos surdos sentiram isso. Em 1999, aos 11 anos de idade, ainda no Colégio Mitre, ela e o grupo de surdos foram separados em salas diferentes. “Quando aconteceu isso eu fiquei triste, tinha crise de choro e sentia falta da minha mãe”. Por isso, a 5ª série ficou na história de Nahla como o pior ano letivo da vida escolar.
Nahla Yatim foi a primeira surda de Foz do Iguaçu a ter um título de mestra – Foto: Guatá / Denise Paro
Como não havia intérpretes no colégio, ela era obrigada a fazer leitura labial. Após reclamações, o colégio decidiu rever o procedimento e deixou uma sala com todos os surdos no sistema inclusivo com ouvintes. Mas foi só quando Nahla começou a cursar o 6º. ano é que se conseguiu intérpretes para assistir às aulas.
A então adolescente foi se adaptando ao ritmo da vida até que chegou à universidade. Ela cursou Letras, licenciatura em Libras, na Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC em sistema EAD, mas precisava viajar a cada 15 dias para as aulas presenciais em Florianópolis.
À época, ela teve que cursar Letras em uma instituição fora de Foz do Iguaçu porque a cidade não tinha faculdade com intérpretes. Ao todo nove surdos foram prestar vestibular em Santa Catarina, desses, apenas Nahla e outra garota foram aprovadas.
Na UFSC, Nahla sentiu-se em casa. A maioria dos professores eram surdos e sabiam Libras. Também havia intérpretes para os professores que não dominavam a língua. Lá ela tinha vários colegas de outras cidades.
A graduação abriu novos horizontes para ela. Após concluir o curso, em 2011, Nahla começou a dar aulas, passando pela Uniamérica e Cesufoz. Mas não parou por aí. Mais adiante, em 2013, fez especialização em Educação de Surdos, Aspectos Pedagógicos e Culturais, no Instituto Federal de Santa Catarina – IFSC, campus bilíngue, na cidade de Palhoça (SC) . Naquela instituição havia professores bilíngues ou surdos e funcionários formados em Libras.
O passo seguinte de Nahla foi fazer mestrado na UFSC em Estudos da Tradução o que a levou a morar em Florianópolis no início de 2014. Foi assim que alçou a condição de primeira surda de Foz do Iguaçu a ter um título de mestre. Lá ela foi orientada por uma professora doutora, que também é surda.
Agora, ela galgou outros horizontes. Está cursando doutorado em Sociedade, Culturas e Fronteira na Unioeste, campus Foz do Iguaçu, e a pesquisa trata justamente da temática envolvendo os surdos: Currículo da Disciplina de Libras no Ensino Superior como L2 (segunda língua).
Em Foz do Iguaçu as barreiras continuam. Quando Nahla entrou no programa de doutorado, não havia intérpretes. A Unioeste não tem ainda professor concursado em Libras para esta função, apenas aqueles contratados temporariamente.
Em uma das disciplinas obrigatórias, a Unioeste disponibilizou um intérprete que vinha de Cascavel, para atendê-la. Nas eletivas, aquelas disciplinas nas quais o estudante opta por fazer, Nahla conta com o próprio namorado, Filipe Augusto da Veiga, 29 anos, para ajudá-la. Aluno do mestrado no mesmo programa, ele é professor temporário de Libras da Unioeste e considera precária a educação voltada para surdos. “Em Foz não há uma preocupação com a melhoria da educação dos surdos”, diz Filipe.
Durante a pandemia, as disciplinas foram oferecidas on-line para todos os alunos. Isso facilitou o acesso ao conteúdo de quem era surdo na turma.
Aprovada em 24 de abril de 2002, a Lei 10.436 reconhece a Libras como meio legal de comunicação e expressão no país. O decreto 5626 de 2005 estabelece a obrigatoriedade da disciplina de Libras no Ensino Superior, a formação do professor e de intérpretes. A Lei 12.319 de 2010 regulamenta a profissão de tradutor e intérprete de Libras. Para os cursos de licenciatura, a disciplina de Libras é obrigatória.
Legislação até existe, mas há muita morosidade para que sejam respeitadas. Em Foz do Iguaçu, um outro setor da educação enfrenta tal realidade de espera. A Lei Municipal 3708, de junho de 2010, institui a obrigatoriedade da inclusão da Libras no currículo escolar das instituições municipais de ensino de Foz do Iguaçu. No entanto, ainda não é cumprida.
O que pouca gente sabe em Foz do Iguaçu é a existência de uma invisibilidade quanto à capacidade e a existência dos surdos em Foz do Iguaçu. Na cidade, os surdos costumam ocupar empregos de faxina, cozinha de hotel, empacotador, ou seja, ocupações onde ficam escondidos onde não têm contato com o público. “O pessoal de Foz não acredita na capacidade dos surdos”, conta Nahla.
Nahla, apesar do currículo de excelência, ainda tem dificuldade para trabalhar como professora de Libras. Para ela, falta união para lutar e reivindicar os direitos dos surdos. Muitas famílias de surdos não sabem que existe uma escola própria, o que acaba atrapalhando o desenvolvimento das crianças, no idioma dos sinais e no próprio português.
Filipe, na condição de professor de Libras, diz que são poucos os surdos que conseguem continuar os estudos e entrar em um curso superior. Eles temem a didática, que é voltada para ouvintes e não para surdos. Também têm receio de fazer graduação porque sabem que é mais difícil que na escola. “Sentem medo. Se tivessem ambiente acessível e não tivessem esse trauma que vem da escola, eles conseguiriam estar se desenvolvendo. A maioria tem medo de dar um passo adiante”, lamenta.
Filipe e Nahla, noivos e parceiros na luta em defesa da pessoa surda – Foto: Guatá / Denise Paro
Para Filipe, é preciso desenvolver um trabalho com a família e a sociedade para fazer com que o surdo se desenvolva e seja capaz. A própria família, muitas vezes, impõe ao surdo a condição de que ele não tem capacidade.
Nahla e Filipe são noivos. Ele, antes mesmo de conhecê-la, já sabia Libras.
Filipe é catarinense e quando frequentava a pré-escola tinha um coleguinha surdo com quem sempre ficava junto, apesar da dificuldade de comunicação. No ano de 2000, os dois amigos se encaminharam para escolas diferentes. Mesmo assim, mais adiante, Filipe resolveu fazer um curso de Libras.
Em 2014, já adulto, ingressou na graduação de Libras na UFSC e lá conheceu Nahla, no dia do aniversário dela, época em ela que cursava o mestrado.
Antes, os dois quase se esbarraram quando Nahla fazia especialização em Palhoça. Eles frequentavam a mesma instituição, porém em dias diferentes.
A Língua Brasileira de Sinais – Libras foi implantada no Brasil por Dom Pedro II quando foi fundado o Instituto Nacional de Educação dos Surdos – INES. Na ocasião, ele trouxe ao Brasil um professor surdo francês, por isso, a Libras brasileira tem influência da língua de sinais francesa.
Assim como a língua oral, cada país possui sua língua própria de sinais.
Assine as notícias da Guatá e receba atualizações diárias.