Ponte no rio Boicy, na primeira metade do século XX – Foto atribuída a Harry Schinke
São tantas as histórias que ouvi de meu pai nos últimos tempos de sua vida. Ele, que sempre preferiu o silêncio na maior parte de sua trajetória, foi quebrado pela minha insistência e andou abrindo frestas no baú de memórias. Por elas deixou escapar pequenas “passagens”, termo que usava para se referir a fatos do cotidiano que vivenciou na fronteira durante mais de 70 anos.
Penso que as dramáticas têm seu peso mas não concorrem com as mais divertidas. Prosaicas, como aquela que teria ficado registrada durante muito tempo no livro de ocorrências do batalhão do exército e que aconteceu lá pelos idos dos anos 40, “logo depois do final da Guerra”, conforme meu pai contou.
Silva, “um boa praça”. Originário da região de Telêmaco Borba veio servir o exército na companhia isolada de Foz do Iguaçu. Para isso circundou o mapa do Paraná de trem e de navio. Apesar de sua pouca escolaridade, logo depois da sua chegada à cidade mereceu virar cabo tamanha aplicação no curso de formação. Do próprio curso, tirou, entre outras lições, a máxima de que os relatórios das atividades de um militar deveriam ser bastante minuciosos. E, como ouviu de um superior, ter as “tintas próprias” do sujeito que relatava um determinado fato, dando ênfase ao que realmente importava.
Foi assim que numa noite de dezembro, Silva deu sua contribuição para as lendas da caserna iguaçuense. Escalado para coordenar a guarda do pequeno batalhão no período, o que significava zelar pela segurança do patrimônio e pela disciplina dos engajados naquela companhia de defesa nacional, ele relatou com estranha clareza e bastante estilo ao “livro de ocorrências” – uma espécie de diário da caserna – sua ação para debelar um possível incidente diplomático na noite da fronteira:
“Estando eu, Silva, como cabo do dia, respondendo pelo nobre atributo de defender nossa guarnição e manter a ordem das coisas aqui no quartel e no resto da vila de Iguassu, lá pelas tantas depois das 10 da noite, fui informado de que havia desordem e bagunça pelos lados da putaria do Café e Leite. E que faziam parte do entrevero, alguns homens deste nosso querido batalhão. Como era noite alta já, e não parava a algazarra, com os gritos aumentando e chegando no nosso posto, resolvi montar uma patrulha com seis homens e a bordo de nossa viatura Jeep, pra lá me dirigi.
Fazendo todo o trajeto em atenção redobrada, alcancei a beira do rio Boicy, foi quando constatei de que era de lá mesmo que vinha o barulho. Infernal que nem o tanto de calor que fazia dentro da viatura.
Quando adentrei ao recinto suspeito, tive uma surpresa ao ver que alguns de nossos rapazes fardados disputavam na mão, com marinheiros e civis, inclusive distintos paraguaios e argentinos, as mulheres daquela casa de tolerância suspeita, gerenciada pela Luiza Satã. Constatei que o entrevero era grande e que o pau tanto dentro do estabelecimento como no pátio corria solto, solto, solto, solto, solto, solto, solto.
Diante do perigo, tomei a providência de encerrar a festa no puteiro afugentando o pessoal sem farda e efetuando a prisão dos nossos pracinhas, dando um pequeno desconto para a urgência deles, pois, data vênia, é fim de ano, e todo mundo quer fazer e merece festa também”.
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