De BDF – Em 30 de agosto último, um general chileno aposentado se suicidou quando a polícia bateu à sua porta para buscá-lo para cumprir sentença de prisão pela morte de Víctor Jara, ocorrida em setembro de 1973, dias após o golpe de 11 de setembro que mergulhou o país em uma sangrenta ditadura por 17 anos.
O suicida de 86 anos foi o único, dentre outros seis militares condenados pelo caso, que escapou de começar a cumprir a pena de 25 anos em regime fechado. As condenações dos outros, com idades entre 72 e 83 anos, foram um passo importante para o Chile fazer as pazes com os horrores da ditadura Pinochet (1973-1990).
Mas o caso ainda não foi fechado. Ativistas buscam a extradição do ex-tenente Pedro Barrientos, que mora nos EUA, onde conseguiu cidadania.
Ele é considerado o responsável mais direto pelo assassinato do cantor, e a decisão de manda-lo de volta ao Chile para responder pelas acusações estão, atualmente, nas mãos de um juiz do estado da Flórida.
A década de 1960 mudou a música mundial, com vários exemplos de nomes – em diversas culturas – que alargaram a influência do gênero, assumindo um papel chave na contracultura. Esses revolucionários contestaram desde costumes, limites sonoros até os próprios regimes políticos em que estavam inseridos.
Mas poucos levaram suas mensagens políticas até as últimas consequências – chegando a morrer por elas – como o chileno Víctor Jara, assassinado sob tortura nos primeiros dias do golpe militar no país, de 11 de setembro de 1973.
“Víctor Jara era um artista de rara natureza, não era só um compositor incrível. Ele também era dançarino, ator, diretor de teatro, dirigiu artisticamente grupos da magnitude do Quilapayún e do Inti Illimani” disse ao Brasil de Fato Francisco Prandi, sociólogo e músico, integrante do EntreLatinos.
Jara foi um dos expoente do movimento Nueva Canción da América Latina, que nos anos 1960 resgatou a música folclórica como contraponto ao imperialismo cultural dos EUA. Assim, ao lado de Violeta Parra, Margot Loyola, Gabriela Pizarro e Héctor Pavez, ele cantava a vida e as lutas do proletariado da América do Sul, em canções que se tornaram símbolo de resistência dos oprimidos naquela década.
Para Prandi, “Jara dizia que a Violeta marcou o caminho pelo qual a geração dele seguiu, mas acho que ele é tão fundador da Nueva Canción, essa música com engajamento social, quanto Parra e Patricio Manns, por exemplo”.
Entre 1970 e 73, foi defensor do governo de Salvador Allende, um dos primeiros socialistas a chegar ao poder pelo voto.
Sua importância para a luta de classes chilena foi tanta que, imediatamente à tomada de poder, os militares o torturaram até a morte no Estádio Chile, que hoje leva seu nome.
Nascido em 1932 de pais lavradores, Jara foi muito mais que apenas músico. Ativista, se dedicou ao teatro desde a década de 1950, como diretor, levando peças para encenações em diversos países da América do Sul e da Europa. A partir de meados da década seguinte, passou a integrar o quadro de professores do Instituto de Teatro da Universidade do Chile.
Compôs sua primeira canção tarde, apenas aos 29 anos de idade, a belíssima Paloma Quiero Contarte.
Logo, no entanto, os temas de amor e rurais foram cedendo espaço à temática social. Essa evolução pode ser acompanhada em seus oito álbuns de estúdio, gravados entre 1966 e 1973.
Uma de suas canções mais populares, El Derecho de Vivir en Paz, presta com rara beleza solidariedade ao povo vietnamita, vítima da invasão dos EUA para “conter o comunismo” no país. Sua música se tornava universal e um dos hinos da luta da esquerda em todo o mundo.
Prandi explica que Jara “tinha um estilo muito único de tocar violão, construir harmonias que não eram usuais à época. As letras que ele fazia também passeavam pela ternura, indignação, convocatória. Tudo isso com uma mente muito aberta do ponto de vista estético.”
“Em um momento em que havia certa exigência de uma estética nacional-popular por parte da esquerda, ele dialogava com os Los Blops, grupo de rock progressivo que grava com ele El Derecho de Vivir en Paz”. Víctor era um grande militante e um artista da mais alta categoria.”
Mas ele atuava, geralmente, armado apenas do violão – “Uma canção de Víctor Jara é mais perigosa do que 100 metralhadoras”, como diz um ditado chileno. Jara se tornou uma dos mais conhecidos defensores do governo de Allende e do sonho de construir um governo do povo naquele país
Tanto reconhecimento despertou ódio intenso dos militares golpistas, que garantiram que ele tivesse uma morte dolorosa. Ao tomar o poder em 11 de setembro, eles ordenaram a todos os trabalhadores chilenos que fossem aos seus locais de trabalho e aguardassem. Assim fez Jara, que foi à Universidade do Chile, onde seria preso na manhã seguinte.
Com as mãos na cabeça, foi levado junto com outros milhares ao Estádio Chile que havia se convertido em um campo de concentração, tortura e extermínio. Seu corpo mutilado, cravejado de balas, foi encontrado no dia 16 em um terreno baldio. Os relatos sobre o que ocorreu nesses cinco dias não são unânimes.
Alguns dizem que reconhecido ao lado de outros presos políticos, Jara fora espancado sem cessar por dias. Há testemunhas que dizem que um militar o ostentava como troféu, torturando-o na frente de outros colegas, com orgulho. As diversas fraturas em suas mãos corroboram o relato de que elas foram destruídas para impedir que voltasse algum dia a tocar um violâo.
Jara morreu debaixo de tormentos indescritíveis, mas sua morte continuou atormentando seus algozes. Ao longo das décadas, a campanha para a resolução do assassinato ganhou apoio internacional, incluindo nomes como o cantor Bono Vox, do U2.
E, nesse aniversário de meio século do golpe de Pinochet, o Chile se prepara para cantar em altos brados as músicas de Victor Jara. Enquanto isso, seus assassinos escorrem pelo ralo da História, escolhendo entre a prisão e o suicídio.
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