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Um Trem Que Nos Une, texto de Nilson Monteiro
Um Trem Que Nos Une, texto de Nilson Monteiro
13 de outubro de 2023
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Texto e fotos reproduzidos de perfil do autor em rede social.
Há um trem apitando dentro de mim.
Há um trem em céu de estrelas em minhas noites infantis ensolaradas e de breu puro, mel enlameando suas rodas enferrujadas.
Há um trem teimoso e incansável a chacoalhar saudades, melancolias, angústias e alegrias.
Há um apitando lembranças de vagões cheios de pessoas, ricas e pobres a dividir espaços, os tetos gastos de tempos.
Há um trem com mistura de todos e tudo – homens, mulheres, malas, pacotes, trouxas, galinhas, porcos, crianças esparramadas pelos seus lugares.
Há um trem a erguer cancelas e assustar gente e animais nas cidades e nas roças por sua presença metálica e pesada. A soltar fumaça, como fogão à lenha em movimento, ou deixar rastros de óleo e de aço rangido contra trilhos.
Há um trem indo e vindo repleto de lembranças de um tempo em que as pessoas se reuniam, com cadeiras nas calçadas, para falar de tudo, sob luzes remelentas.
Há um trem a lembrar do cumprimento, chapéu na mão, entre os que moravam nas aguadas, nos sítios, nas fazendas, nas cidades pequenas, cidades grandes, aqui e ali, ligados pelo trilho que cortava as conversas com seu barulho hoje extenuado de nostalgia.
Há um trem que rasgava campinas e me lembra a saudação quase rural dos habitantes, especialmente dos mais velhos, que me enche o peito de alegria e, diria, de emoção, de lágrimas de areia.
Há um trem com imagens de fantasmas e fantasias de bailes em mofados barracões de ferramentas.
Há um trem a balançar roupas nos varais e cercas de balaústres riscados de velhice.
Há um trem de bancos de madeira, degraus de metal, corredores de olhos e queixos molengas enfiados nos peitos.
Há um trem de dormentes dormidos de sonhos e sujos de sapatos a saltar solidões de seus soluços empedrados oleosos, margeados de beira-de-linha, touceiras preguiçosas e matos secos de seiva.
Há um trem, lagartixa ensebada que guincha em curvas, retas, lombadas e depressões das almas de gentes, os sorrisos em suas janelas de lata.
Há um trem de embarques e desembarques, partidas e chegadas, em plataformas cuspidas de tristeza, pamonha vendida em folhas de milho, pipoca murcha e amendoim torrado.
Há um trem a cortar escuridões, túneis de pedra, vigiado por postes de madeira fincados em distâncias cansadas.
Há um trem autorizado pelo boné ensebado dos chefes de estações e seus cigarros de palha nos dentes amarelos.
Há um trem que cutuca a lembrança das barras de trilhos, a lembrar o papel histórico de Quatro Barras, o último pouso dos cavaleiros ou condutores de mulas que se enfiavam mata adentro em direção à Serra do Mar.
E vice-versa, ligando o progresso da litorânea Paranaguá com a acanhada vila de Curitiba dos tempos de então.
Era uma trilha graciosa de onde talvez se escutasse, anos depois, o apito mecânico e difuso do trem na Estrada Ferroviária Curitiba – Paranaguá.
Há um trem que passa costurando a imaginação de pessoas, das quais foi íntimo ou não, em Colombo, Campina Grande do Sul, Adrianópolis, Pinhais, Piraquara, Leopoldina, Ponta Grossa, Matinhos, Sorocaba, Tiradentes, Morretes, Machado, Bocaiuva do Sul, Tunas do Paraná, Presidente Bernardes, Matinhos, Catende, Londrina, Serra da Saudade, Itirapina, Dracena, São João Del Rei, Mogi Mirim, em centenas e centenas de outras estações e segue apitando país afora, cérebros além, corações apertados.
Há um trem, ruidoso, passando dentro de mim, um trem que sobe e desce montanhas de memórias, sentidos e sentimentos, seus olhos de gato varando os escuros.
Há um trem e sua locomotiva impune que risca garoa, vaza neblina, cortina de chuvas e cascatas de borrascas.
Um trem que não passa despercebido das gentes de nossa terra, embora suma em seus caminhos para horizontes embaçados e, tristemente, sem volta.
Nilson Monteiro é escritor, poeta e jornalista em Curitiba, Paraná.
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