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Festa e paúra, conto de Bernardo Ajzenberg
Festa e paúra, conto de Bernardo Ajzenberg
26 de dezembro de 2023
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Texto reproduzido da edição 94 do jornal Cândido, publicada em maio de 2019.
Incrédulo em relação a tarô, búzios ou vidência, por sugestão da esposa tinha procurado anos antes uma sensitiva, pagando-lhe cinquenta reais para dela ouvir o anúncio de algo próximo do caos. Mas seria caos no casamento, disse a adivinha, a ameaça de turbulências ríspidas e dores, com risco alto, em paralelo, de impotência ou frieza — nada negativo nas finanças, trabalho ou negócios. O casamento, porém, seguiu bem, entre os mesmos picos e vales dos seus conhecidos, sem impotência ou frieza, razão pela qual esqueceu o assunto.
Tudo programado, mas podia não acontecer. Foi só quando Jorge bateu o martelo referente à venda do lote 619 que a conquista se consagrou. Assim que o jurado do Guinness confirmou o feito com uma piscadela, a festa meticulosamente planejada eclodiu. Funcionários soltaram balões, sorriram com efusão. A pequena plateia bateu palmas.
Do púlpito, brandindo o martelo de estimação salpicado de incrustações douradas — aquele que mais gostava de usar, indefectível como a batuta de um maestro e que julgava dar sorte —, ele exibiu o seu sorriso branco e largo, bateu de leve com a ferramenta na própria testa num gesto jocoso e soltou o grito selvagem: hip urra! Todos gritaram viva!
O objetivo fora definido meses antes. Estudou em detalhes os leilões mundo afora. Precisaria vender mais de 600 lotes em sete horas. Os auxiliares contataram o Guinness. Pagaram assessoria. Estavam todos preparados, física e mentalmente. A hora tinha chegado.
Apesar do ar-condicionado, Jorge sentiu um calor se empapar subitamente entre as pernas e gotas de suor escorrerem nas têmporas quando o olhar de um dos presentes alcançou o seu, e uma espécie de raio se desenhou no caminho povoado de gente que havia entre os dois. Buscou por um lenço nos bolsos, em vão. O homem não sorria; tampouco saudava nenhum conviva; nenhuma simpatia brotava dele; trazia uma pasta de couro sob o braço esquerdo; permanecia imóvel ao lado da porta, como se fosse, ele próprio, a porta, aberta, prestes a se fechar.
Jorge não a esperava para esse dia, mas sabia o motivo daquela presença, e a paúra ganhou forma: o salão teve suas dimensões diminuídas, carabinas, escopetas, espingardas, fuzis, garruchas, metralhadoras, pistolas, revólveres ou rifles, acoplados a espadas, facas, facões, estiletes ou canivetes, se ergueram diante dos seus olhos ameaçando soterrá-lo. A realidade se distorceu ainda mais ao som da comemoração no momento em que o representante do Guinness, de terno e gravata, subiu no estrado para lhe entregar o certificado, ambos posando conforme o ritual a encarar com solenidade o fotógrafo contratado para a ocasião.
O que o atormentava? Paciente à espera do pior diagnóstico? A certeza angustiante da impossibilidade de encarar com dignidade o inevitável caminho rumo à morte? Talvez tivesse sido mais prudencial de sua parte registrar um testamento vital, autorizando que na hora da decisão outros pudessem, não necessariamente antecipar a sua morte, mas ao menos garantir com lealdade que ela se desse de modo natural, sem mais retardamentos. Jamais passara pela sua cabeça, como agora, a possível iniciativa de constituir um inventário extrajudicial, ainda que não fossem muitos os herdeiros. Mas Jorge sabia que aquele sujeito não era médico nem tabelião.
O local ficou mais repleto ainda, o público continuava a aplaudir, o tempo pareceu se estagnar, funcionários sorriam como em câmera lenta; um bolo com velas surgiu e ele soprou, e foi então, no instante de beijar a esposa, que explodiram dentro do corpo os soluços violentos, espasmos bruscos, uma respiração logo irregular, tudo sem lágrimas, mas também sem controle nem engano; o sarcasmo antes explícito se dissipava no movimento de flores flutuantes enquanto mãos dúbias surgiam de todos os lados a parabenizá-lo.
Jorge sempre enfrentou sem pudores o medo da insignificância que o acompanhava desde pequeno, quando, para ganhar um jogo, já não hesitava em trapacear — tal como fazia de ofício aliás, a seu juízo, aquela sensitiva dos búzios. E o recorde mundial atingido agora, após décadas de pequenos, médios e grandes negócios escusos, consolidaria sua trajetória.
A partir de certa idade mudamos a nossa forma de mastigar e de deglutir as coisas — não só os alimentos. O festejado leiloeiro exultava triunfante, mas trêmulo de pavor: sabia não ter saída alguma para além das algemas que o aguardavam naqueles bolsos escuros e amplos, a poucos metros dali.
Bernardo Ajzenberg
nasceu em São Paulo (SP), em 1959. É escritor, tradutor e jornalista. Traduziu mais de 20 livros, especialmente do espanhol e do francês. Ficcionista, é autor de
Variações Goldman
(1998),
A gaiola de Faraday
(2002, prêmio de Ficção do Ano da Academia Brasileira de Letras),
Homens com mulheres
(2005, finalista do prêmio Jabuti) e
Olhos secos
(2009), entre outros. Foi coordenador executivo do Instituto Moreira Salles e ombudsman do jornal Folha de S.Paulo. Texto reproduzido do jornal Cândido, edição 94, de maio de 2019.
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