Vicenta Ávalos Vera, aos 98 anos, em 1998 – Foto: Áurea Cunha
Quase um século depois de nascer paraguaia em Tacurupucú, atual Hernandárias, Vicenta Ávalos Ferreira Vera resiste a uma paralisia que lhe entrevou em uma cama, há cinco anos, em Foz do Iguaçu. Entre vontades que vão de saborear comidas paraguaias e um bom gole de vinho, ate apostar na loteria, histórias permeiam seus lampejos de delírio e de lucidez. Nelas, sempre presentes um mosaico de recordações esparsas de fatos e personagens que marcaram os primeiros dos mais de 80 anos em que vive na cidade brasileira da fronteira.
A comprovação do que foi realidade só as imagens amareladas contidas em um álbum de fotografias podem evidenciar. São doces lembranças de viagens pelo rio Paraná, beirando o embarque de erva-mate e madeira, de caçadas de onça e de “revoltosos” trilhando as picadas de “Iguassu”. O tempo emoldurando sempre muito trabalho de gente humilde e anônima que edificava a fronteira.
Filha primogênita de Vicente Ferreira, uma espécie de gerente administrativo da poderosa Industrial Paraguaia, empresa produtora de erva-mate do início do século XX, Vicenta só foi ter o sobrenome do pai depois de casada e com filhos. Abandonada pelo marido, sua mãe, a costureira Rosa Isabel Ávalos, fugiu para o Brasil sob o medo de que a influência de Ferreira lhe tirasse a guarda da filha recém nascida.
Em Foz, Vicenta ganhou quatro irmãos, frutos do segundo casamento de Rosa Izabel: Eleodora, Cyríaco, Ramon e João. Já por parte de pai, escutou histórias sobre mais de 40 irmãos, de mães diferentes, que teriam recebido no registro o sobrenome de Ferreira. Um caso que se explica pelo poder do cargo do administrador ervateiro e menos pela lenda(?) da disparidade entre o número de homens e mulheres no Paraguai após a guerra contra a Tríplice Aliança.
O final da infância e a adolescência de Vicenta foi dividida entre catar lenha no mato e carregar pesados fardos de tecidos para sua mãe confeccionar camisas e calças, enquanto a ensinava o ofício. “Era um dia de catar lenha, outro dia de costurar”, conta. “As roupas eram feitas meio mamarrucho (toscamente), serviam só para os peões. Entregava fiado, depois levava a “notita.”
Quem não dispunha de dinheiro, trocava com outra coisa, principalmente comida. “Naquela época – conta Vicenta num português claro – tudo aqui era mato. Existia pouca gente, mas todos eram amigos e se ajudavam.”
De sua recordações, faz parte a figura de Jorge Sanways, o segundo prefeito de Foz do Iguaçu. “Don Jorge Inglês me via carregando as confecções e brincava: ‘Vamos, vamos, Vicenta!’. Parecia que era ‘mi taitá’ (papai), de tão bom que era com a gente. Foi ele que vendeu a máquina de costura para minha mãe trabalhar.”
“Naquela época, tudo aqui era mato. Existia pouca gente, mas todos eram amigos e se ajudavam.” Na foto, Vicenta Vera, jovem, na década de 30 do século XX (Foto: acervo Guatá).
Entre a responsabilidade de cuidar dos irmãos menores e o auxílio na costura, a adolescente Vicenta conheceu Diego Vera. Ele, um marinheiro argentino que em uma de suas tantas passagens por Foz a bordo dos vapores que transitavam no rio Paraná, lá pelos idos de 1916 foi convencido pelo então prefeito Jorge Schimmelpfeng a ficar na vila que começava a se constituir e fazer funcionar a primeira usina de força elétrica.
“Era jovencito quando veio morar aqui em Iguaçu. Nos víamos na rua, sempre trabalhando. Quem sabe, ele também se enamorou por mim, não é? explica a tímida Vicenta.
Casaram em setembro de 1918 e tiveram oito filhos (**): Agripina, Elisa, Irene, Frederico (falecido), Joana, Ramon (falecido), Adalberto e Terezinha. Dos primeiros tempos da nova vida, ela lembra que a pobreza sempre foi combatida com muito esforço. “Diego trabalhou durante toda a vida.”
Filho de Segundo Lujan, oleiro, e de Elisa Vera, uma rezadeira, mestiça índia de Missiones, Diego Vera nasceu em Posadas no ano de 1893. Morreu com quase 84 anos, em Foz do Iguaçu, onde desembarcou aos 23. Peronista “doente”, dividiu-se entre o amor à pátria portenha e uma cidadania brasileira que incluiu título de eleitor, participação em júri popular e até uma breve experiência em grupo político nacionalista no vilarejo da fronteira.
O marido de dona Vicenta trabalhou por mais de três décadas operando usinas de eletricidade em Foz e Puerto Iguazú, cidade fronteiriça onde, finalmente, se aposentou.
“Lá no Parque (Nacional do Iguaçu), era no rio São João. Diego trabalhava a semana toda e só vinha no domingo. Diferente daquela primeira, aqui na cidade, que era à lenha”, explica a viúva Vicenta.
Antes, na primeira usina de Foz (à beira do rio Monjolo, na área urbana de Foz), o casal perdeu o filho Frederico, vítima de tétano, ao 10 anos. Na época, o tratamento de saúde dos iguaçuenses se resumia aos remédios de de “jujio”, ou “se ia de barco até Posadas ou cidades gaúchas” – longínquas como Passo Fundo e Cruz Alta, “à procura de mais recursos”.
Aliás, foi numa dessas viagens fluviais que Vicenta Vera teve talvez a maior comprovação de que seu destino era viver ainda por muito tempo. Em 4 de julho de 1920, ela conta, apesar de pronta para embarcar no vapor Villa Franca, depois de levar a filha Agripina ao médico em Posadas, não conseguiu alcançar o porto no horário previsto. “Pouco depois de partir; o navio afundou por causa de uma explosão. Diego, que me esperava em Foz, até acreditou que havia ficado viúvo, mas não ficou.”
E Vicenta finaliza: “Agora quero descansar, que se eu começo a lembrar e contar tanta história, então eu vou ficar velha mesmo.”
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