Neste período de isolamento social imposto pela pandemia do Covid-19, temos sido confrontados com algumas realidades que não eram muito bem-vindas. Uma delas consiste na nossa relação com a manutenção da vida doméstica, que inclui a limpeza de nossa própria casa, o cuidado com as roupas, o abastecimento da geladeira e despensa, a preparação das refeições e o cuidado com as crianças, idosos e enfermos. Muitas famílias brasileiras ainda vivem sob o espectro dos três séculos de colonização e escravidão e relegam o trabalho doméstico às mulheres da casa ou detém o privilégio de terceirizar as atividades descritas acima em troca de remunerações intermitentes ou de salários que não se equivalem aos dos patrões e patroas.
Uma constatação que não parece ser muito difícil para qualquer um que cumpre as regras do confinamento é a de que as mulheres sofrem uma sobrecarga de trabalho. Tanto aquelas que trabalham fora de casa e são remuneradas, como as que se dedicam integralmente ao trabalho doméstico estão em condições agudas de exploração: as primeiras por suportarem duplas jornadas e, na maioria das vezes, receberem os menores salários; e as “donas de casa” por terem o seu trabalho invisibilizado, desmerecido e não remunerado. Neste momento, uma camada mais ampla da sociedade está experimentando pela primeira vez como o trabalho doméstico é exaustivo, repetitivo e desgastante física e emocionalmente.
De maneira ainda mais dura, temos a realidade cruel das mulheres que trabalham como empregadas domésticas, grupo formado em sua maioria por mulheres negras e pobres, desempenhando as tarefas que os homens e as mulheres de classes sociais mais abastadas se negam a fazer. Submetidas a regimes de trabalho sem estabilidade como as diaristas, com baixos salários e até mesmo em condições que lembram nosso passado escravocrata. A pesquisa realizada pelo Instituto Locomotiva, entre os dias 14 e 15 de abril e publicada no dia 22 do mesmo mês, revelou que, por causa da pandemia, cerca de 39% das empregadas domésticas foram dispensadas de seus trabalhos sem nenhuma remuneração. Em tempos de quarentena por causa da disseminação do coronavírus, muitas dessas mulheres viram suas fontes de renda desaparecerem e agora dependem da iniciativa de um governo que já deu inúmeras provas de sua misoginia e distanciamento da classe trabalhadora.
Ilustração de Marceloh
Há algum tempo, intelectuais feministas têm apontado que há na dinâmica do sistema capitalista uma dupla estrutura de exploração do trabalho que permaneceu encoberta, até nos escritos de Marx e Engels. Além da produção de bens, capital e lucros, há também o trabalho realizado na reprodução da vida. Em um manifesto feminista publicado ano passado[1], Cinzia Arruza, Tithi Battacharya e Nancy Fraser enfatizam que a produção não seria possível sem um trabalho que é desempenhado cotidianamente e que foi apagado pelo sistema capitalista. Este trabalho consiste na reprodução da vida, isto é, desde a reprodução da espécie, passando pelos anos de educação, formação para o trabalho e a manutenção diária das condições básicas de vida como a alimentação e a higiene. Trabalho esse que mantém os trabalhadores e as trabalhadoras aptos a cumprir as suas funções, que é desempenhado majoritariamente pelas mulheres, sendo frequentemente desprovido de reconhecimento e remuneração. Ao mesmo tempo em que a sociedade encara esse trabalho como supérfluo e inferior, o sistema capitalista depende dele para sua existência.
Em uma perspectiva mais otimista, essa grande crise sanitária que atravessamos nos deu amostras de que mudanças na direção da política econômica dos governos mundo afora precisa acontecer, discursos de encolhimento do Estado e privatização de serviços estratégicos, como saúde, foram colocados à prova com o “novo normal” da pandemia. Contudo, o futuro está aberto. E, nessa disputa, projetos de maior recrudescimento da precarização das relações de trabalho e o escancaramento da política de extermínio da população pobre ficam nítidos a cada pronunciamento ou entrevista de Jair Bolsonaro.
O cenário que nos aguarda ao fim do confinamento deve nos revelar algumas mudanças sociais, a primeira delas, a grande pauperização da sociedade, associada a transformações nas relações do trabalho, impactadas por essa experiência compulsória de home office e possíveis estratégias de isolamento social nos próximos meses. Nossa expectativa é que na esteira dessas transformações as relações de gênero sejam repensadas, pelo menos no que diz respeito às funções que são compulsoriamente atribuídas às mulheres na tarefa ininterrupta de prover o cuidado e alimentação das famílias, bem como a valorização de todas as pessoas que exercem o cuidado como profissão. Nosso receio, entretanto, é que as mulheres sofram as principais consequências dessas transformações econômicas e sociais.
[1] ARRUZA, Cinzia; BATTACHARYA, Tithi; FRASE, Nancy. Feminismo para os 99%: um manifesto. São Paulo: Boitempo, 2019.
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