Data não é motivo de celebração, e sim de lembrete de que essa é uma revolução inacabada – Tânia Rêgo/Agência Brasil
. Com apenas dois artigos, a Lei nº 3.353, a Lei Áurea, assinada no dia 13 de maio de 1988, aboliu a escravidão no Brasil, pondo fim a mais de três séculos de trabalho forçado. Cabe salientar que o país foi o último das Américas a fazê-lo. A ideia de liberdade em suas mais indistintas formas logo se mostraria utópica. A ausência de medidas eficazes de reparação faz com que essa parcela da população – 56,10% dos brasileiros se declaram negros – ainda continue socialmente e economicamente atrás de outros grupos. A pandemia causada pelo novo coronavírus acirrou esse quadro.
No país, de cada 100 pessoas assassinadas , 71 são negras. Entre 2005 e 2015, a taxa de homicídios de pessoas negras aumentou 18,2%, enquanto a das pessoas não negras diminuiu 12,2% no mesmo período. Ao fazer o recorte de gênero, o abismo se torna mais proeminente. Enquanto a taxa de homicídios de mulheres não negras teve crescimento de 4,5% entre 2007 e 2017, a taxa de homicídios de mulheres negras cresceu 29,9%. Em números absolutos, entre as não negras o crescimento foi de 1,7%, já entre mulheres negras foi de 60,5%. Os dados são do Atlas da Violência publicado em 2017 pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Em relação ao mercado de trabalho, a maior parcela de desempregados é da população negra, são 64,2% do total de 13,7 milhões sem ocupação, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Enquanto 34,6% dos trabalhadores brancos estavam em ocupações informais, entre os pretos ou pardos esse percentual era de 47,3%. Mesmo com maior acesso à educação, eles têm os menores salários.
Conforme destaca a doutora em historia, professora e integrante de Maria Mulher – Organização de Mulheres Negras, Lúcia Regina Brito Pereira, após a abolição as pessoas não tinham empregos decentes, não podiam ir à escola, os trabalhos eram sempre os menos remunerados. De acordo com ela isso impediu que se tivesse um crescimento igualitário junto a outros grupos que contrariamente foram contemplados com terras, trabalho e crédito. “A gente continua buscando a conclusão dessa abolição que ainda não ocorreu, que pese todas as mudanças, as ações que foram feitas ao longo desses 132 anos, estamos em outro patamar, mas ainda nos falta muito naquilo que diz respeito a educação, saúde, a infraestrutura, o trabalho”, observa, avaliando que o que houve foi uma semiabolição.
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Manchete do jornal Gazeta no dia seguinte à declaração do fim da escravidão no Brasil em 13 de maio de 1888 / Reprodução
“Formalmente, os negros foram libertos, mas essa ação do então governo naquele momento era, em tese, para beneficiar os aos senhores escravizadores, esse era o objetivo. Por outro lado, para as pessoas escravizadas foi um momento significativo porque queria-se a liberdade, a liberdade de trabalho, a liberdade de ir e vir, uma liberdade também meio que sonhadora não é? E foi isso, só isso, porque a realidade, o dia quatorze começou a ser bastante cruel. Essa liberdade era uma utopia. E ainda hoje estamos lutando por ela”, frisa.
De acordo com ela, a falta dessa reparação histórica faz com que essa realidade não tenha mudado de modo significativo. “A sociedade escravista criou alguns estigmas que esse grupo hegemônico também reproduz nas suas ações, nos seus olhares, no impedimento de que, mesmo tu sendo uma pessoa capacitada, tu não pode ocupar determinados cargos. Ainda somos invisíveis politicamente, nos postos de maior remuneração, e ainda somos tratados e tratadas independentemente da escolarização, do posicionamento na vida, como seres de segunda categoria”.
Dados da The Trans-Atlantic Slave Trade Database reportam que navios portugueses ou brasileiros embarcaram escravos em quase 90 portos africanos, contabilizando mais de 11,4 mil viagens negreiras, tendo 9,2 mil como destino o Brasil. Ainda de acordo com o levantamento, em torno de 4,8 milhões das pessoas que foram escravizadas chegaram ao litoral brasileiro.
Em torno de 4,8 milhões das pessoas que foram escravizadas chegaram ao litoral brasileiro / Reprodução Navio Negreiro de Rugendas
Advogado e integrante da Frente Quilombola do RS, Onir Araújo diz que o 13 de maio, comemorado como dia nacional de combate ao racismo, lembrado e celebrado na Umbanda como dia do Preto Velho , ao contrário do informado pela historiografia oficial, foi fruto de um longo processo de resiliência e resistência dos descendentes e dos africanos escravizados. “A historiografia oficial trata de esconder o fato do protagonismo negro, a partir das mais variadas formas de luta, desde o aquilombamento, rebeliões, greves em engenhos, formações de confrarias para enterros e compra de alforrias, etc, que percorreram toda a história do Brasil Colônia e do Império”, pontua.
Para ele essa disputa de narrativa segue presente, por tratar-se de uma revolução Inacabada, cujos ecos reverberam até hoje. “Portanto o 13 de maio traz para nós, descendentes de africanos escravizados, a tarefa central de afirmar esse protagonismo na abolição e tratar de concluí-lo”, afirma.
“Esse é um problema extremamente sério, esse país guarda na sua raiz um racismo e uma discriminação muito profundas, apesar de tudo isso nós sobrevivemos. As teorias higienistas lá do século XIX, início do século XX, que previam o nosso extermínio não conseguiram fazer isso e essa organização econômica do mundo vai ter que dar conta dessa população, mais especificamente no caso aqui no Brasil, que vive a maior desigualdade”, ressalta Lúcia.
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