A Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin (BBM) da USP: “Para combater o fascismo não basta cantar e dançar, é necessário buscar o conhecimento, um bem mutante e que se renova constantemente. Nesse sentido, as bibliotecas potencializadas pela ação cultural são imprescindíveis”, afirma o professor Luís Milanesi – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens
Em um país como o Brasil, que tem uma carência crônica de políticas públicas para a cultura, é muito importante se buscar alternativas para efetivar ações que unam cultura, educação e cidadania. Isso, indo muito além daquilo que os governos – em todas as suas instâncias – se propõem a fazer mas acabam deixando pelo caminho ideias não concretizadas e uma pilha de promessas esquecidas. Uma ação que pode e deve ser vista com atenção é o resgate do papel fundamental das bibliotecas na formação cultural e educativa dos cidadãos, onde o livre pensar é mais do que só pensar.
“As bibliotecas tiveram e têm a função de preservar o conhecimento como se fossem, em seu conjunto, a extensão dos cérebros humanos, a memória da humanidade”, garante Luís Augusto Milanesi, professor sênior da Escola de Comunicações e Artes da USP (ECA-USP). “Isso permitiu e permite que sejam transportadoras do conhecimento no transcurso dos séculos, bem como fornecedoras de informações capazes de gerar novas camadas de saber”, acredita ele, também autor de vários livros, entre eles A casa da invenção e Biblioteca, ambos pela Ateliê Editorial.
O professor Luís Milanesi: “O mundo do trabalho pede cada vez menos aqueles que sabem tudo de um assunto e sim os que tenham a capacidade de combinar e integrar informações de vários campos” – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens
Ex-diretor da ECA e um dos expoentes da Biblioteconomia no Brasil – e defensor intransigente do fomento de políticas culturais –, Milanesi criou, em 2018, o Lacis – Laboratório de Cultura, Informação e Sociedade. Gerado pelo Departamento de Informação e Cultura da ECA, o Lacis tem como proposta central realizar atividades de extensão, notadamente cursos e seminários, bem como desenvolver pesquisas no âmbito da intersecção entre informação e cultura. Nesse campo situa-se um dos seus projetos mais relevantes pela sua dimensão social e pelos desafios teóricos e práticos que propõe: “a biblioteca pública pós-Gutenberg” ou o que será posto no lugar dos acervos municipais, em crise desde a expansão da internet. “A decadência e até mesmo a extinção dessas bibliotecas ocorre em um momento em que se ampliam os vetores da desinformação”, afirma Milanesi, reiterando o tripé de projetos que alicerçam o laboratório: o primeiro busca levar aos municípios a arte que a USP, por meio de seus cursos, cria; o segundo projeto propõe-se a difundir obras de autores uspianos pelos municípios interessados em conhecê-las e discuti-las; e o terceiro trata justamente dessa “biblioteca pós-Gutenberg” e seu impacto social e cultural. Mais informações sobre o Lacis no e-mail lacis@usp.br.
Para o professor da ECA, a biblioteconomia é capaz de responder às demandas de fomento de cultura e informação que a sociedade exige, mas deve se adaptar às exigências contemporâneas.
“O mundo do trabalho pede cada vez menos aqueles que sabem tudo de um assunto e sim os que tenham a capacidade de combinar e integrar informações de vários campos. O bibliotecário não é apenas o especialista nos meios técnicos, mas nos fins da informação e do conhecimento”, contextualiza.
JORNAL DA USP – Os termos cultura e informação estão associados não só ao Lacis, mas ao Departamento de Informação e Cultura, que oferece o Curso de Biblioteconomia. Como os dois termos se conectam ao campo bibliotecário?
LUÍS MILANESI – Desde pelo menos a segunda metade do século 20 a informação, no plano acadêmico, aparece vinculada ao campo bibliotecário. A conexão com a cultura é menos frequente, ainda que, pela tradição, a biblioteca seja posta dentro da área cultural. Isso ocorre com base em raciocínio linear que liga literatura, livros e bibliotecas. Nas universidades essa operação mental passa por vários crivos e adquire novas dimensões. Um olhar retrospectivo mostra que, já na Antiguidade, as conexões entre biblioteca, informação e, depois, as relações entre informação e cultura se integram como se fossem um único corpo. Desde a biblioteca de Alexandria, criada antes de Cristo com o propósito de reunir todo o conhecimento registrado em papiros, e destruída no início da Era Cristã, os acervos foram entendidos como a reunião de registros do pensamento, da criatividade, das ciências e artes para preservar e legar o conhecimento de grupos sociais de geração a geração.
JUSP – Então, elas teriam a função de preservar o conhecimento humano, não é?
MILANESI – Nesse sentido, elas tiveram e têm a função de preservar o conhecimento como se fossem, em seu conjunto, a extensão dos cérebros humanos, a memória da humanidade. Isso permitiu e permite que sejam transportadoras do conhecimento no transcurso dos séculos, bem como fornecedoras de informações capazes de gerar novas camadas de saber. A Odisseia ou a filosofia de Aristóteles chegaram ao século 21 por meio de uma sequência de bibliotecas de papiro, pergaminho, papel ou instaladas na memória dos computadores, um fluxo contínuo somente interrompido pela interdição, censura e destruição de bibliotecas.
JUSP – Como as bibliotecas se inserem nas demandas culturais de uma sociedade como a brasileira?
MILANESI – No Brasil, os primeiros cursos para formação de bibliotecários praticamente surgiram na segunda metade do século 20. Quando foram criados, o primado foi da informação, subentendida como informação científica. Isso porque os cursos, dentro das universidades, estavam impregnados pelas demandas dos pesquisadores. Durante décadas eles dependeram dos serviços bibliotecários até o surgimento da internet e a mudança do cenário das pesquisas científicas. Elas continuaram dependendo das bibliotecas, agora situadas em outro plano, não necessariamente um lugar físico, mas na memória dos computadores. Nessa biblioteconomia brasileira inicial, os leitores padrão não foram os escolares ou os habitantes de uma cidade, mas os cientistas, como se a universidade produzisse soluções para as suas próprias demandas e não para as da sociedade. A cultura entrou em cena, timidamente, na Biblioteconomia da USP, nos anos 1970, pelo trabalho do professor Teixeira Coelho, mas sem que fosse plenamente entendida como própria do curso e, assim, não integrando o “núcleo duro” da área.
JUSP – Os cursos seriam basicamente técnicos?
MILANESI – Sim, desde suas origens, e centrados na informação científica. Esta, direcionada aos pesquisadores, é uma parte e não o todo da área. A redução drástica do seu público levou a biblioteconomia a diminuir o âmbito de seu desempenho, deixando à margem a quase totalidade da população, usuários potenciais das bibliotecas escolares e públicas. Uma das alegações apontadas para explicar essa escolha seria a escassez de oferta de empregos. No entanto, a universidade não se pauta pelo mercado de trabalho, mas pela formação de pessoas capazes, inclusive, de mudar esse mercado. Outra alegação seria a dificuldade para organizar essas bibliotecas, o que indica uma visão tecnicista que se concentra nos meios e não nos fins, ou nas técnicas e não no público.
Biblioteca da Faculdade de Direito da USP: “Um olhar retrospectivo mostra que, já na Antiguidade, as conexões entre biblioteca, informação e, depois, as relações entre informação e cultura se integram como se fossem um único corpo”, diz Milanesi – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens
JUSP – Podemos entender que essa seja a razão das bibliotecas municipais estarem em crise, como o senhor já afirmou?
MILANESI – O papel do bibliotecário se agiganta quando tem pela frente escolares e os habitantes dos municípios, públicos complexos que exigem muito mais dele. Nas bibliotecas das cidades, praticamente abandonadas, as tarefas iriam muito além das rotinas técnicas. Elas seriam também indutoras do conhecimento. Assim, além de criar serviços de informação, caberia a elas promover a discussão do que foi lido, visto, ouvido e, ainda, ser estímulo para criar informações – como se propusesse ler poesia, discuti-la e estimular novos poetas. Mas os cursos de Biblioteconomia, desde sua ascensão ao nível superior, raramente saíram do primeiro ato: a organização de acervo, sem chegar à dinamização dele. De qualquer forma, na história, esses personagens, sempre denominados bibliotecários desde Alexandria, pouco visíveis e quase sempre silenciosos, garantiram o trânsito e a expansão do conhecimento que, se compartilhado, torna-se cultura. Com frequência, queimaram bibliotecas e, provavelmente, bibliotecários.
JUSP – Mas a memória ficou, não é verdade?
MILANESI – Sim. Outras e outros garantiram a permanência da memória graças aos repositórios da produção do intelecto e da sensibilidade de todos os tempos e lugares. No Departamento de Informação e Cultura da ECA-USP está o curso de Biblioteconomia, este o nome dado por lei federal, ao campo que forma bibliotecários, os que darão continuidade à tarefa de reunir, preservar, organizar e difundir as informações e, com isso, dinamizar o conhecimento em todas as situações sociais, do ensino fundamental à universidade e, principalmente, nas bibliotecas das cidades que são, potencialmente, centros de cultura.
JUSP – Como o conceito de cultura, que é amplo e diversificado, se liga à informação? E como o Lacis pode atuar nesse sentido?
MILANESI – O Lacis, neste momento, organiza cursos de extensão direcionados aos que atuam na cultura pública dos municípios, um projeto de pesquisa e dois de extensão. Em todos, informação e cultura se integram não porque assim se deseja, mas pela força dos conceitos e dos precedentes históricos. O conhecimento de um indivíduo ou de um grupo está na dependência da quantidade e diversidade de informações disponíveis e utilizáveis por ele ou compartilhada pelo grupo. Biblioteca e cultura nas práticas de séculos estiveram e estão próximas, por vezes tão próximas que parecem formar um corpo único. Se a universidade amplia o conhecimento a partir das informações disponíveis e de novas pesquisas, a cultura das cidades expande-se a partir da ampliação de repertório de seus habitantes e das discussões que ele motiva. A biblioteca é capaz de unir, via ação cultural, o texto escrito ao falado e, em sequência, exibir um filme ou fazer uma exposição sobre o conteúdo do livro e da palestra. Desde as primeiras décadas do século 20 as bibliotecas públicas norte-americanas atuaram, regularmente, como centros de cultura. No Brasil, a Biblioteca Nacional já no final do século 19 organizava atividades culturais, mostrando com clareza que a informação se expressa por múltiplos meios correlacionados. A ação cultural não prescinde da ação informativa.
JUSP – Um dos seus projetos mais relevantes pela sua dimensão social e pelos desafios teóricos e práticos que propõe seria a chamada “biblioteca pública pós-Gutenberg”, ou o que será posto no lugar dos acervos municipais, em crise desde a expansão da internet. O que esse projeto significa?
MILANESI – “A biblioteca pós-Gutenberg” é a pesquisa âncora do Lacis. Ela tem pela frente o desafio de criar um modelo de serviço de informação pública para substituir as bibliotecas municipais que não atendem mais ao tempo. Seria a reativação plena da biblioteca como fonte vital de informações de interesse público que, ao se transformar em conhecimento coletivo, torna-se cultura. Esse projeto incide sobre o óbvio, a informação é o passo que antecede a todos os outros quando se busca alcançar benefícios coletivos, especificamente quando o objetivo é o desenvolvimento com iguais oportunidades. A Universidade, que por definição é geradora de conhecimentos, tem não só a tarefa de preparar pessoas para atuar na sociedade, mas de oferecer à sociedade os resultados de suas investigações para inovar. No caso específico, a pesquisa visa criar estratégias de difusão de informações no ambiente brasileiro, notavelmente contaminado pela desinformação orgânica. Esse projeto de pesquisa, na prática, articulará a informação como força capaz de expandir o conhecimento e, em consequência, a cultura.
Acervo da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin (BBM) da USP: para Milanesi, “as políticas culturais só podem ter como ponto de partida a ampliação do repertório de uma coletividade. Essa é a tarefa política fundamental das bibliotecas como centros de cultura” – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens
JUSP – Como a arte entra no campo da informação?
MILANESI – A arte talvez seja o meio de informar mais poderoso, já que ela aciona em diferentes graus o intelecto e a sensibilidade. Quando a arte se expressa por meio de linguagem nova, a capacidade de absorvê-la é menor. Se for redundante, a aceitação é ampla, como se observa nos produtos da indústria da cultura. No ambiente brasileiro a capacidade de assimilação é desigual, refletindo as diferenças socioeconômicas e culturais. No entanto, nem sempre o nível de informação das elites coincide com sua conta bancária. A redundância aproxima classes sociais diferentes, como ocorre no carnaval. A olho nu constata-se que a arte canônica ou as novas elaborações pouco circulam pelos meios menos escolarizados, quase sempre os que habitam os baixios da pirâmide social. Como a cultura é construída e transformada pelas informações que circulam por um determinado meio e que podem ser compartilhadas e debatidas, entende-se que a arte é um meio de informação capaz de potencializar os emissores e receptores dela.
JUSP – Como uma biblioteca, nesse caso, pode colaborar como irradiadora de arte e cultura?
MILANESI – Uma biblioteca pode realizar um debate em torno de Vidas Secas, o livro de Graciliano Ramos e o filme de Nelson Pereira dos Santos, ambos convergindo para a miséria e a fome, o que um sociólogo pode demonstrar pelas estatísticas, explicando causas e consequências. É possível discutir Guernica, de Pablo Picasso, como linguagem visual e como expressão de uma circunstância histórica que os livros expõem. Quando a arte se relaciona com os fatos do cotidiano de uma cidade, um bairro, instaura-se uma nova percepção da arte e dos fatos. Uma obra sociológica ou um poema de Drummond podem trazer elementos que se completam ou se conflitam. A capacidade de combinar informações e não apenas juntá-las desenvolve-se na medida em que há oferta de informação e possibilidades de discuti-las. Nesse sentido, as políticas culturais, antes de tudo, só podem ter como ponto de partida a ampliação do repertório de uma coletividade. Essa é a tarefa política fundamental das bibliotecas como centros de cultura. Quando a ignorância se torna política de governo, como ocorre nas ditaduras, pelo ostensivo ataque à cultura e ciência, a biblioteca, se persistir em seus propósitos, firma-se como um dos poucos antídotos capazes de neutralizar a militância da desinformação, pré-requisito de todas as modalidades de fascismo.
JUSP – Como as bibliotecas situam-se dentro das propostas de políticas culturais?
MILANESI – A maioria refere-se a ela de modo genérico e algumas dessas políticas nem a mencionam. De um modo geral há pouca relação entre a prática cultural e a política cultural feita burocraticamente para atender a exigências de governo. Nos planos políticos das ditaduras de todas as colorações e épocas, as bibliotecas, em plenitude, não têm lugar porque elas são difusoras de informação que ampliam o conhecimento e só vivem em ambiente de liberdade. No Brasil do século 20, nos dois extensos períodos de governos autoritários, raramente foram vistas como ameaças, tal a precariedade delas. Durante décadas, como regra, caracterizaram-se como repartições públicas de baixa relevância até mesmo para a área cultural. Essa desvalorização evidencia-se quando se criam centros de cultura sem bibliotecas, como se fossem desnecessárias. Por isso, elas estão sendo extintas por desuso ou obsolescência. Como lazer, perderam terreno desde as décadas iniciais do século 20 e como pesquisa escolar, a partir da expansão da internet.
JUSP – A biblioteca perdeu o seu lugar na sociedade, então?
MILANESI – Neste caso, a crise foi maior, uma vez que não há lugar para ela no âmbito de uma educação formatada para levar os alunos a repetirem determinados conteúdos, geralmente dados em sala de aula ou pelos livros “adotados” e, raramente, pela pesquisa que leva a confrontos de fatos, dados e ideias. A prática de transferência de conteúdo pela aula expositiva, a base da educação brasileira, dispensa biblioteca e pesquisa. Então, antes da preocupação pela falta de biblioteca nas escolas, é preciso considerar que ela foi subdimensionada pela educação. De qualquer forma, tanto no campo público quanto no escolar as bibliotecas perderam as suas funções essenciais como usinas informativas capazes de alimentar educandos e os habitantes das cidades.
JUSP – Como esse esvaziamento poderia ser revertido?
MILANESI – Mudanças ocorrem quase sempre pela iniciativa de algum iluminado. Durante um período entendeu-se biblioteca como um bem que toda cidade que se queria civilizada criava. Posteriormente, essa visão foi corroída pela tecnologia, que fez dos acervos físicos uma herança do século 20, progressivamente obsoleta. Raramente pensou-se em ajustar a biblioteca ao século 21. Creio que a primeira e quase última ação que valorizou as bibliotecas teve vida curta. Ela iniciou-se em 1935 e terminou em 1938, tempo que durou o Departamento de Cultura, uma inovação da prefeitura paulistana dirigida por Mário de Andrade.
Mário de Andrade em 1935: para Milanesi, uma política de cultura consistente deve partir do trabalho iniciado pelo extinto Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo, comandado pelo escritor modernista – Foto: Victor Knoll/Acervo IEB-USP
JUSP – Qual foi o projeto de Mário de Andrade e por que ele não frutificou?
MILANESI – Esse período foi politicamente conturbado e marcado pela truculência varguista, que culminou com o Estado Novo. Nesse sentido, a cultura proposta por Mário de Andrade foi fortemente alicerçada pela biblioteca como o meio de expansão do conhecimento, o objetivo central do departamento. O que foi feito na época hoje é identificado como “democratização da cultura”. Os recursos disponíveis não fluíam para o “povo da cultura”, mas para o povo, por meio de serviços culturais. Os artistas ganhavam porque se apresentavam aos que não os conheciam. As bibliotecas planejadas na época denominavam-se “populares” ou “operárias” e não se caracterizavam como um simples acervo em oferta, mas como um feixe de atividades que, décadas depois, foram denominadas “ação cultural”. Tais ideias, nem é preciso dizer, tornaram-se alvos preferenciais dos prepostos do Estado Novo em São Paulo ou daqueles que se acomodaram às suas práticas. Mais de oito décadas depois, qualquer política de cultura com um mínimo de consistência deve começar onde o Departamento de Cultura parou. Com isso, seria possível fazer valer o que determina a Constituição, a cultura como um direito de todos.
JUSP – Por que o descaso atual em relação às bibliotecas como base do conhecimento?
MILANESI – Esse é um problema em busca de respostas. O descaso não é genérico e sem fronteiras. Talvez os agentes públicos entendam que elas sejam desnecessárias e que a cultura se constrói espontaneamente. No Brasil a crise das bibliotecas agrava-se, provavelmente, porque há um claro desprezo pela memória. Cada geração nova parece dizer que o mundo se iniciou com ela. As transformações tecnológicas sinalizaram aos mais jovens que basta ter acesso à internet para dispor de todo o conhecimento do mundo. Em certo sentido, essa percepção é correta. Mas não basta ter possibilidade de acesso a todas as informações. É imprescindível que elas sejam selecionadas e conhecidas, pois sem esse conhecimento não haverá a ampliação do repertório pessoal e coletivo que possibilita ampliar a percepção de si e do mundo onde vive. A negação em conhecer e as políticas que trazem, implicitamente, essa bandeira produzem a permanência e não a transformação contínua.
JUSP – Estamos falando de uma construção ampla de conhecimento, não é? Como ela deveria se dar?
MILANESI – Além da família e do meio social, com suas crenças e valores, e das mídias concentradas na internet, o conhecimento, como regra, é construído pela escola, do ensino fundamental à universidade, e pelo que poderia ser percebido como ação cultural permanente efetuada pelas ações. A biblioteca estaria nela, mas a biblioteca nem mesmo está presente na maioria das escolas. O que as bibliotecas, potencialmente, poderiam oferecer aos habitantes das cidades não se realiza porque preferiu-se descartá-las como obsoletas. O risco dessa prática é a desvalorização da busca e cotejo de informações. Fora da prática de ler, ver e discutir, o que resta está nas redes sociais segmentadas por tribos. O conhecer não é meta da cultura pública do país. Em seu lugar, foi posto e valorizado um novo folclore de fácil assimilação pela redundância. Para combater o fascismo não basta cantar e dançar, é necessário buscar o conhecimento, um bem mutante e que se renova constantemente. Nesse sentido, as bibliotecas potencializadas pela ação cultural são imprescindíveis.
JUSP – A quem caberia traçar os novos rumos das bibliotecas como centros irradiadores de cultura?
MILANESI – À universidade, uma vez que a ela cabe identificar e resolver problemas que afetam o país. Quando o rei Frederico Guilherme, da Prússia, perguntou o que estava errado com o seu país depois da invasão das tropas napoleônicas e das humilhações sofridas em decorrência disso, recebeu a resposta de um grupo de sábios: a educação. À frente deles estava o educador, linguista e diplomata Wilhem von Humboldt, que tratou de reorganizar o modelo prussiano de educação. Desse esforço surgiu a Universidade de Berlim, instituída em 1810, com a missão de inovar e produzir soluções. Essa instituição, pela qual se formaram, até o presente, notáveis filósofos e cientistas, contribuiu para estabelecer uma nova concepção de universidade que, inclusive, alcançou a USP de Fernando de Azevedo em 1934. Aparentemente, está claro que é tarefa incontornável da universidade detectar o que nos trava, o que nos faz uma sociedade que acumula déficits e se notabiliza pelas desigualdades.
JUSP – Quais seriam os meios para eliminar ou diminuir essa desigualdade?
MILANESI – A educação formal, os serviços de informação e cultura que podem ser entendidos como a educação além da escola são meios para garantir a todos condições iguais no ambiente de uma sociedade que perpetua assimetrias sociais violentas. A quebra da desigualdade começa pela educação igual para todos. O desaparecimento progressivo no cenário brasileiro das bibliotecas públicas e de seus vários possíveis serviços é fator de retrocesso nos esforços para garantir a todos o direito de conhecer. Pode ser indagado se as bibliotecas teriam como suprir as necessidades de informação de uma coletividade. Depende do alcance de seus serviços. De qualquer forma, elas foram no tempo a garantia da preservação e expansão do conhecimento. Atualizadas, poderiam dar continuidade a essa tarefa.
JUSP – Visando a uma melhor e maior formação do bibliotecário como agente de difusão cultural, poderíamos dizer que a interdisciplinaridade é o caminho necessário?
MILANESI – A biblioteconomia, por exemplo, não oferecerá cursos de computação, uma vez que ela é uma ferramenta, um meio e não um fim, mas se associará a quem ofereça. A interdisciplinaridade é indissociável da ideia de Universidade. Não há como manter cursos presos em seus círculos de giz e formar especialistas aos 22 anos. O mundo do trabalho pede cada vez menos aqueles que sabem tudo de um assunto e sim os que tenham a capacidade de combinar e integrar informações de vários campos. Não há mais a necessidade de graduar um especialista em recuperar informação, mas formar aqueles capazes de compreender o seu público e suas necessidades de informação. O bibliotecário não é apenas o especialista nos meios técnicos, mas nos fins da informação e do conhecimento. Essas práticas só poderão ser implantadas pelo consórcio entre vários especialistas.
JUSP – A Universidade está apta ao exercício da interdisciplinaridade?
MILANESI – Esse é um dos temas mais citados e pautados, mas com escassos esforços de colocar a interdisciplinaridade em prática. A universidade brasileira foi construída dentro de um modelo profissionalizante, atrelado à legislação corporativista do trabalho, hoje caduco. A própria USP nasceu interdisciplinar, mas recuou e já em 1936 foi transformada num aglomerado de unidades que representavam profissões. O Lacis, pelo seu campo temático que aproxima cultura, informação e sociedade, é interdisciplinar, pois, tematicamente, reúne e depende de contribuições de várias áreas. Portanto, é uma plataforma de diálogo entre vários atores e suas especialidades. Só essa junção de disciplinas será capaz de configurar uma resposta menos incompleta às disfunções detectadas no País.
JUSP – Disfunções que se acentuaram nos últimos anos, não é?
MILANESI – O Brasil, no campo poliédrico da cultura e informação, experimentou, recentemente, o gosto amargo do autoritarismo que, por pouco, não se consolidou. Nele, informação e cultura são crivadas, estabelecendo um modelo que atropela o básico da democracia. O entendimento desse fenômeno e a criação dos meios para neutralizá-lo são tarefas que se integram plenamente aos propósitos de uma universidade geradora de conhecimentos e respostas capazes de beneficiar, principalmente, aqueles que não dispõem de defesas contra a desinformação orgânica que devasta o País. Onde o conhecimento não é ampliado por falta de informação, reforça-se o canto das sereias mal-intencionadas.
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