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[DO OUTRO LADO DE UMA QUARENTENA – 1: das coisas indizíveis]
não conseguia falar, não conseguia se mexer, não conseguia respirar sozinho, mal conseguia abrir os olhos, mas chorou.
“roberto*? o senhor está no hospital. está entubado há quinze dias. estamos cuidando do senhor” foi a primeira coisa que ouviu quando acordou do coma induzido, necessário para manter funcionando um pulmão que sofreu rápido demais. mas não foi aí que ele chorou.
“roberto*, sei que o senhor deve estar assustado com o tubo na sua garganta, mas ainda não conseguimos tirar” foi a resposta ao olhar triste – um pouco ainda sedado, um tanto ainda confuso – com que mirou o ventilador ao perceber que não conseguia respirar livremente. mas não foi aí que ele chorou.
“roberto*, a sua família não pode visita-lo. ninguém pode.” foi a resposta à solidão inevitável, potencializada pelos enfermeiros e médicos e técnicos e fisioterapeutas vestindo camadas e camadas, olhos quase não visíveis por trás dos óculos e viseiras. mas não foi aí que ele chorou.
“roberto*, o senhor ainda continua grave” foi o que ouviu enquanto nos questionávamos como um homem de seus quarenta anos e sem doenças teve órgãos falhando, parando, sofrendo, quase que navegando à terceira margem do rio. mas não foi aí que ele chorou.
roberto chorou quando o monitor apitou. não o seu, mas de sua vizinha de leito, a senhora no mesmo quarto. chorou quando a linha ficou reta. chorou quando, após mais de catorze ciclos de massagem cardíaca, a linha não se moveu. chorou quando tiramos as luvas e olhamos o relógio para declarar o óbito da dona fátima*.
não conseguia dizer o motivo, mas imaginamos, quando ele chorou.
quando roberto* chorou, eu mal podia me mover. eu não sabia o que falar.
quando roberto* chorou, assustado por ver a senhora ao lado falecer, eu respeitei seu silêncio. e o meu.
(*) Os nomes mencionados no texto são fictícios, obviamente. Mas a história é baseada em fatos reais.
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