Da esquerda para a direita, sentados: pessoa não identificada (com o surdo), Donga (tocando prato-e-faca) e João da Baiana (com o afoxé). À direita: criança não identificada – Foto: Sebastião Pinheiro/Coleção José Ramos Tinhorão/Acervo IMS
O pesquisador Rafael Galante, etnomusicólogo e doutor em história pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, e a diretora de educação do Instituto Moreira Salles, Renata Bittencourt, organizaram o ebook Música e Modernismos Negros, lançado recentemente e já disponível para download gratuito. A publicação é fruto de projetos de pesquisa comissionados pelo IMS, a partir de temas representados em seu acervo.
Rafael Benvindo Figueiredo Galante – Foto: Currículo Lattes
O projeto evidencia a importância dos modernismos negros como expressões artísticas e culturais de resistência. O conteúdo reflete sobre a centralidade da diáspora africana na formação da identidade brasileira e suas repercussões na sociedade atual. De acordo com Rafael Galante, “os leitores serão convidados a conhecer não apenas o impacto artístico de indivíduos notáveis mas também a compreender as complexas questões enfrentadas pelos artistas negros em um país que em grande medida ignorou [ou silenciou] suas vozes e suas contribuições”.
A publicação reúne dez ensaios que propõem perspectivas alternativas e contemporâneas acerca da experiência negra no País, bem como sobre a história da cultura brasileira. Dividido em quatro capítulos, o material aborda temáticas como memória, racismo, religiosidade e silenciamentos. O ponto de partida desta realização foi a Semana de Arte Moderna de 1922, cujo centenário foi comemorado em 2022 e é um desdobramento da série de encontros Música e modernismos negros: formação a partir do acervo IMS, realizados virtualmente em 2022.
O ebook, assim como as lives que lhe deram origem, podem ser adotados como fonte de referência para pesquisadores e professores, contribuindo para reforçar o cumprimento da Lei 10.639/03, que determina a abordagem da história e da cultura afro-brasileira no ensino escolar.
Capa do Ebook Música e Modernismos Negros – Imagem: Divulgação/Instituto Moreira Sales
O primeiro capítulo da publicação, intitulado “Vozes pretas e formas musicais africanas”, reúne dois ensaios que destacam o papel da música como um veículo de memória e saberes coletivos. Em “78 RPM: revoluções pretas macumbistas”, a cantora, intérprete e professora Fabiana Cozza traz a importância da música e da oralidade na expressão cultural negra no Brasil. No texto, a autora destaca artistas como Zé Espinguela, João da Baiana e Getúlio Marinho, que, por meio de suas canções e práticas, refletem uma experiência comunitária e ancestral.
Em “Os sambas e a modernidade negra no Brasil de Mário de Andrade”, o músico e historiador Salloma Salomão Jovino da Silva, que é pesquisador do Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Comunicação e Cultura (Celacc) da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, apresenta a modernidade negra no Brasil como um fenômeno cultural que, apesar da repressão e da invisibilidade promovidas por elites brancas, continua a se manifestar através de práticas musicais como o samba, e revela a resistência e a riqueza da cultura afro-brasileira em meio a um contexto de exclusão e estigmatização.
O segundo núcleo do ebook aborda aspectos da produção cultural negra no Rio de Janeiro entre o final do século 19 e o início do 20, dentro do recorte de temáticas como “Racismo, gênero e visualidades”. Em “Modernismos, modernidades negras e racismo na história da música brasileira”, Martha Abreu, professora do Instituto de História da Universidade Federal Fluminense, aponta o silenciamento do protagonismo dos músicos negros no campo musical, expresso em capas de partitura. A autora explora dois episódios ocorridos no Rio de Janeiro: o primeiro, um encontro entre intelectuais e músicos negros, em 1926, narrado por Hermano Vianna; o segundo, a gravação do samba Pelo telefone, no início de 1917.
Ainda neste capítulo, Juliana da Conceição Pereira, doutora e mestra em história, reflete sobre os modernismos e a modernidade negra a partir das experiências de jovens artistas, investigando a trajetória de mulheres negras atuantes no teatro e na indústria fonográfica, entre o final do século 19 e o início do 20. A autora pontua que, apesar do silenciamento, “as mulheres negras atuantes no teatro de revista dialogavam e disputavam os sentidos da modernidade, valorizavam a cultura popular e construíam novas formas de se verem representadas, a partir de seus próprios termos”. Já o pesquisador Vinícius Natal analisa a construção histórica que resultou no privilégio de pessoas brancas no ofício de carnavalesco na cidade do Rio de Janeiro.
“Política e religiosidade” são temas da terceira parte do ebook, que reúne as trajetórias de três dos mais importantes cantautores negros no Brasil do século 20. A curadora Glaucea Helena de Britto assina “Poéticas afro-brasileiras na obra de Heitor dos Prazeres”, ensaio que aborda a potência criativa e a produção artística multifacetada de Heitor dos Prazeres, sambista, compositor e artista plástico. A partir da análise da composição “Pai Benedito” e da capa do álbum Macumbas & Candomblés, o texto apresenta a dimensão crítica, estética e simbólica do artista, que registrou com maestria as urgências de seu tempo.
“As gravações de macumbas por Mano Eloy e o modernismo negro da década de 1930”, escrito pela historiadora Alessandra Tavares, expõe como experiências culturais negras estiveram presentes na indústria fonográfica desde seus primórdios, mas tiveram o seu caráter moderno desvalorizado. O texto parte de uma gravação dos pontos de Iansã e de Ogum, feita por Eloy Anthero Dias, e discorre como a produção de músicos negros foi amplamente secundarizada em nome do exotismo. Ainda neste núcleo, a historiadora Fernanda Epaminondas Soares discorre sobre o pioneirismo e as escolhas políticas de Getúlio Marinho da Silva, frente à abertura propiciada pela indústria fonográfica para a gravação de discos do gênero musical “macumba”.
No último capítulo do ebook, “Lideranças e invisibilidades”, os textos trazem a centralidade das comunidades de terreiro e de suas respectivas lideranças na construção das culturas negras urbanas e de suas redes no Rio de Janeiro e em São Paulo, na passagem da sociedade escravocrata para o mundo do pós-abolição. Em “Religiosidades e (in)visibilidades de mulheres negras no processo histórico dos sambas: de Tia Ciata de Oxum a Madrinha Eunice da Lavapés”, a jornalista Claudia Regina Alexandre destaca a participação criativa, os papéis de liderança e o protagonismo de mulheres negras na construção do universo do samba. O texto evidencia valores culturais negro-africanos como musicalidade, religiosidade e sociabilidade para acessar algumas memórias ocultas na literatura da música popular brasileira.
Em “Nosso Sagrado, o acervo afro-carioca em diálogo com instituições: as casas de umbanda e candomblé como espaços de ensinamentos”, Eduardo Possidonio, doutor em história social, aponta como não apenas os objetos de religiosidade afro-carioca presentes em acervos de instituições museológicas, mas também a produção de artistas negros dos séculos 19 e 20, servem como base para a pesquisa de compreensão para ritos e escolhas dentro dos espaços sagrados da cidade do Rio de Janeiro.
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