Ilustração: Professor Caverna
Provérbios Milenares (5) – “Depois da batalha aparecem os valentes”
Era uma tarde qualquer, com um céu meio cinza, meio azul, aquele típico dia indeciso que não sabe se chove ou se deixa o sol brilhar. Eu estava sentada no banco da praça com meu café na mão, quando avistei a cena: Júlia e Pedro discutindo com uma intensidade digna de novela das nove. Era óbvio que algo grande tinha rolado. E eu, como boa curiosa (e café quase frio na mão), não podia deixar de observar.
A coisa era simples: Pedro, sem nem pensar muito, tinha soltado uma piada sobre o cabelo de Júlia no grupo do WhatsApp. Algo clichê, do tipo “cabelos ao vento ou ventos no cabelo?”. Ele achou que tava sendo engraçado, mas Júlia ficou visivelmente incomodada. A mensagem atravessou como flecha sem alvo, mas acertou em cheio. Daí pra frente, o caos foi plantado.
Júlia, que não tinha papas na língua (e eu adorava isso nela), não deixou barato. Respondeu ali mesmo, no grupo, algo como: “Pena que você não se dedica tão bem ao humor quanto se dedica a perder no fantasy do futebol”. Touché! A galera do grupo ficou naquele mix de “uuuuh” e “puts, isso vai dar ruim”. E deu. O desentendimento digital virou discussão ao vivo, na praça.
Não é sobre o cabelo, Júlia disse, cruzando os braços. É sobre você falar qualquer coisa como se não tivesse consequência.
Pedro, meio sem graça, coçou a nuca. Mas foi só uma brincadeira. Você sabe que eu não quis ofender.
Só que você não pensa, Pedro. Falar sem cuidar é atirar sem apontar. E, no caso, você acertou direto no meu ser. Parabéns.
Essa frase da Júlia ficou martelando na minha cabeça. “Falar sem cuidar é atirar sem apontar”. Humano, quanta verdade num provérbio só! E quantas vezes a gente não faz exatamente isso? Solta palavras ao vento, como se fossem leves, como se não carregassem peso nenhum, e acaba acertando alguém que não tinha nada a ver com a nossa falta de mira.
Enquanto eles discutiam, comecei a lembrar das vezes em que eu também joguei palavras de qualquer jeito. Teve aquele dia que eu disse pra minha irmã que o vestido dela parecia cortina. Na hora, achei que tava sendo engraçado. Só depois percebi o quanto ela ficou chateada, se olhando no espelho por horas, questionando se deveria mesmo usar o tal vestido na festa.
Outra vez, um amigo me contou sobre o sonho dele de abrir uma cafeteria temática, e eu, meio na zoeira, soltei: “Você nem sabe fazer café direito, como vai ter uma cafeteria?”. Na minha cabeça, era só uma provocação amigável. Mas ele nunca mais falou daquele sonho pra mim ou para qualquer pessoa.
Voltei pro presente quando ouvi a voz de Pedro aumentar. Tá, eu entendi que você ficou chateada. Mas também, Júlia, você exagera! Nem tudo precisa virar um drama.
Júlia deu um passo pra trás e respirou fundo, como se estivesse contando até dez mentalmente para não perder ainda mais a paciência. Não é drama. É que, se você não se importa com o que fala, por que eu deveria me importar em ouvir?
Nesse momento, algo mudou no semblante de Pedro. Acho que ele finalmente percebeu que não era só sobre uma piada ruim. Era sobre cuidado, sobre responsabilidade. Ele abaixou a cabeça e murmurou um pedido de desculpas. E, pela primeira vez desde que a discussão começou, Júlia pareceu menos tensa.
Fiquei pensando no quanto palavras têm poder. Elas podem ser ponte ou muro, bálsamo ou ferida. Podem construir conexões ou destruir laços. Mas, acima de tudo, elas carregam intenções, sejam elas conscientes ou não. E o problema não é só a mira, é a falta dela. É disparar sem pensar onde vai parar.
Pedro e Júlia terminaram a conversa com um abraço meio desajeitado, mas sincero. E eu, terminando meu café quase frio, me levantei com aquela frase da Júlia ainda ecoando: “Falar sem cuidar é atirar sem apontar”. Talvez a gente precise aprender a cuidar mais do que diz. A mirar com intenção, a escolher com carinho cada palavra que sai da nossa boca.
No caminho de volta pra casa, passei por um grupo de crianças brincando de amarelinha. Uma delas, ao errar o pulo, ouviu um “você é muito ruim nisso!” de outra. A menina abaixou a cabeça, claramente magoada. Meu instinto foi me abaixar e dizer: “Sabe, errar faz parte do jogo. Da próxima vez, você consegue”. O sorriso que ela me deu foi tão genuíno que quase me fez chorar.
E foi aí que eu percebi: a gente não precisa falar menos, mas precisa falar melhor. Porque, no fim das contas, palavras não são só palavras. Elas são a flecha, o arco e o alvo. E, se a gente mirar com cuidado, pode acertar direto no coração mas de um jeito que faz bem.
Obs. Ficção criada para estimular sua reflexão, nada mais!
Leia também: Provérbios Milenares (1) – Amigo Disfarçado, Inimigo Dobrado – um texto do Prof. Caverna Provérbios Milenares (2) – Ao rico mil amigos se deparam, ao pobre seus irmãos o desamparam Provérbios Milenares (3) – Cada um vê mal ou bem, conforme os olhos que tem Provérbios Milenares (4) – Depois da batalha aparecem os valentes
Tempo, poema do professor Caverna
Siga o canal “Café Filosófico”: no WHATSAPP: https://whatsapp.com/channel/0029Vaz2Fyp5q08aCCuVbU0A
@profcaverna – Instagram @cafe.filosoficoo – Instagram profcaverna@gmail.com – Email
Assine as notícias da Guatá e receba atualizações diárias.