. Às vezes, em um sonho perturbado ressurgia a casa. Um labirinto de buscas angustiadas, sua planta não condiz com a casa das minhas lembranças. Não encontro nossos quartos, a sala ou a cozinha de chão pegajoso. Como se ela se desorganizasse em cômodos distribuídos por aquele emaranhado brilhante que eram os caminhos entrecruzados que as lesmas traçavam nas paredes velhas do banheiro. Objetos se apresentam e não os reconheço, não deviam estar ali: uma mesa com pilhas de papéis desordenados, uma velha pasta, uma cama. Um quarto que parece isolado do resto da casa, sem acesso ao seu interior. Tábuas espalhadas pelo chão, de modo que quase não se pode caminhar. É como se esse pequeno cômodo que não existia contivesse agora toda a casa, demolida, desmontada e guardada em seu próprio interior. Busca angustiada por espaços reconhecíveis que teimam em assumir formas estranhas, sinal seguro de dias amargos que começam com o sobressalto no meio da noite.
. Uma névoa vai cobrindo esse vasto tempo e isso é a memória: tecido precário, feito de lembranças e de esquecimento. Longe, visível através desse filtro, fica o país dos desejos realizados. Longe no tempo, que às vezes se desdobra e lança uma ponte até o presente, com um convite e um roteiro prometendo orientação para caminhar no labirinto.
. Busca desencadeada pelo conto tantas vezes relido, mais uma vez visito a casa, lugar ao qual sei que sempre voltarei para buscar algo esquecido. Decidi ainda ontem, enquanto o Ônibus avançava no escuro da estrada: abriria as caixas quando chegasse. E assim foi, o frio do dia amanhecendo e papéis espalhados pelo quarto. Trabalho de detetive, procurando datas, pistas de quando isso ou aquilo teria sido escrito – fácil com as cartas, marcadas pelo carimbo dos correios – vou ordenando os acontecimentos, tentando descobrir que dia foi aquele em que começamos a dizer sim quando queríamos dizer não.
. Difícil abrir as caixas, como é difícil entrar na casa durante o sonho. Escondidas no fundo do armário, ficam lá, anos intocadas e quando as abrimos, descobrimos que o tempo agiu sobre o que continham e contém já outra coisa.
. Papéis mudaram de cor, fotografias mostram o que não somos mais, letras borradas pela umidade, cartas com as dobras tão vincadas que ameaçam separar-se em quatro partes. De imagens que pensávamos saber de cor, descobrimos um brilho no olhar nunca antes notado e de algumas coisas escritas vem um abalo, pois cantavam já a bola de que os rumos escolhidos eram becos sem saída. Tenho um impulso de escrever nos espaços em branco, registrar ali, 20 anos depois, o susto ao constatar que sabíamos já o que pensamos que só agora sabemos, o futuro já inscrito no passado, mas detenho a mão a tempo: é quase como violar aqueles pensamentos, aquele tempo e sua inocência.
. Tantos registros. A preocupação de quem os colecionou é a mesma que os preserva: são provas de que, um dia, existimos mesmo naquela forma. Existimos e estávamos certos, como constatou um amigo, tempos depois.
. Fisionomias fogem pelos vãos do tempo, mas às vezes um rosto salta por entre os fios do esquecimento e sorri ao tempo em que vira a cabeça para olhar longe. Antes, outra imagem, o corpo grande avançando veloz, entre agressivo e divertido, atropelando pessoas arrumadinhas de olhar indignado com a brincadeira de pega-pega. Acho que a criança nele que inventava aqueles jogos ainda vive e inventa outros, como enganar amigos no telefone inventando identidades absurdas e mal disfarçadas pela voz, coisa que não convence mas mostra essa criança bonita resistindo ainda.
. Tantas vezes visitada em sonhos, a casa voltou palpável quase, fechada em uns tantos envelopes, fáceis de abrir, achei. A casa que vai ficando encoberta de esquecimento, mas nos guardará inteiros. Do tecido onde está presa, podemos puxar sempre um fio com essas lembranças, que nos salvarão nos momentos de perigo. Com esses fios virão imagens instaurando um outro tempo, feito da intensidade de momentos únicos em beleza, não o tempo habitado pela morte. A casa que guarda uma história pertencente ao domínio do inacabado e que, justamente por isso, poderá ser retomada sempre mais uma vez.
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