A manutenção da centralidade do trabalho de cuidado na figura da mulher é uma das barreiras que impede que mulheres cogitem participar da política – Reprodução/Agência Câmara; Reprodução/Câmara dos Deputados; Pablo Valadares/Agência Câmara
. Maternidade e política institucional foram, historicamente, assuntos separados. O exercício da função do cuidado com as crianças era considerado um problema privado, e a política – ou seja, a esfera pública – era o lugar dos homens por excelência. Quando mulheres conseguiam romper as barreiras para a participação política e chegar a cargos eletivos, silenciavam sobre o cuidado com os filhos.
. Um exemplo dessa realidade é a trajetória da deputada federal Juliana Cardoso (PT). Ela foi vereadora da cidade de São Paulo por quatro mandatos. Em 2014, quando teve seu segundo filho, ela teve que voltar ao gabinete apenas 13 dias após o parto. “Eu tive que voltar com o Luiz com 13 dias de nascido. Tive que escolher entre a licença maternidade e continuar na Câmara [de Vereadores] para que a equipe do coletivo pudesse ter a continuidade do seu trabalho” relembra.
. Isso porque, se ela tirasse uma licença, teria que passar o mandato para o suplente, causando a demissão dos assessores que compunham seu gabinete. “Portanto, não dava, naquele momento, para abrir mão de 22 profissionais que estavam em torno do mandato para poder ficar com meu bebê em casa”.
. Há alguns anos, no entanto, o assunto vem sendo pautado nos espaços institucionais da política por mulheres que, amparadas pelo ressurgimento do feminismo na última década, decidiram que era hora de juntar a maternidade e a política. Dois dos expoentes mais conhecidos desse movimento são as deputadas federais Talíria Patrone (PSOL-RJ) e Sâmia Bonfim (PSOL-SP).
. “Os espaços institucionais não são pensados para abrigar mães”, afirma Sâmia, uma das parlamentares que fez da maternidade uma parte da sua luta política. “Isso inclui desde questões básicas, como não ter nenhum trocador na Câmara, desde os horários em que as sessões e comissões acontecem, desde o tempo de licença maternidade, que são somente quatro meses, até questões mais gerais, como a possibilidade de se lançarem candidatas e terem quem cuide de seus filhos no momento em que elas estão exercendo uma atividade política”, explica a parlamentar.
. Talíria descreve os mesmos problemas. “A gente já tem toda uma sobrecarga do cuidado com nossos filhos e enfrenta uma estrutura da política que não está pronta para mulheres mães. Estou falando de não ter nenhum trocador para bebê perto do plenário. Quantas vezes eu troquei minha filha no cafezinho?”, lembra ela. “Estou falando de sessões marcadas às 16h que começam às 20h. O que faz a mãe que amamenta, com filho pequeno?”, questiona.
. O problema atinge questões logísticas e até financeiras. Não há previsão da Câmara para que crianças pequenas viajem entre seus estados de origem e Brasília com suas mães ou seus pais. “Minha filha de três, por exemplo, já paga passagem, e não há um entendimento de que ela pode ir comigo para Brasília. Eu vou morar em Brasília com meus dois filhos e não tenho uma estrutura que ela possa voltar a cada quinze dias comigo para o Rio de Janeiro”, explica Talíria. .
. A dificuldade de representação feminina em cargos eletivos se mostra em números. Mesmo sendo 51% da população, nas eleições municipais de 2020, o Brasil elegeu apenas 12% de prefeitas. O número de vereadoras eleitas foi de 16%. No pleito de 2022, 18% das cadeiras nas assembleias legislativas foram levadas por mulheres. No Congresso Nacional, deputadas federais e senadoras também ocupam 18% das vagas. Há poucas informações sobre quantas dessas mulheres são mães e precisam conciliar as atividades de cuidado com a atividade política.
. Um levantamento realizado pelo Instituto Alziras com as prefeitas eleitas em 2020, é a única a trazer um panorama sobre o assunto. Segundo o Censo das Prefeitas Brasileiras (2021-2024), 85% das mandatárias municipais são mães.
. Quando questionadas sobre quem é o responsável pelas tarefas de cuidado da casa – seja com crianças, idosos ou pessoas portadoras de deficiência – 54% delas afirmou que a pergunta não se aplicava a elas. Quando havia alguma pessoa que demandasse cuidados, 11% delas respondeu que a responsável era uma empregada doméstica, enquanto 11% afirmou ser ela mesma a provedora desse trabalho; 9% afirmaram dividir essa responsabilidade com o/a cônjuge e apenas 1% disse que a responsabilidade maior era do/a cônjuge.
. “A gente infelizmente tem ainda convívio com uma cultura de que o lugar da mulher é o lugar do cuidado, sejam as profissões de cuidado, como enfermeiras, professoras, pedagogas, professoras de educação infantil, seja a ideia do espaço privado mesmo”, diz Talíria. “Quem cuida da casa, quem pensa a logística do lar, quem cuida dos filhos? E obviamente isso está expresso no que é a representatividade da Câmara.”
. A manutenção da centralidade do trabalho de cuidado na figura da mulher – inclusive em empregadas domésticas – é uma das barreiras que impede que mulheres sequer cogitem participar da política, institucional ou não. “Ainda cai sobre nossos ombros a tarefa do cuidado. Quando você não tem uma rede de apoio, familiar ou do estado, quem sai prejudicado com certeza são as mulheres e as crianças”, lembra Juliana. .
. A maternidade traz muitos desafios para a vida das mulheres porque o cuidado também é trabalho. Demanda tempo, esforço e uma organização da vida para dar conta de tudo”, diz Sâmia Bonfim, que entrou na política antes de vivenciar a maternidade. “Considerando que a atividade parlamentar é bastante exaustiva, diariamente é uma engenharia conseguir organizar tudo”, completa.
. Essas barreiras são especialmente altas para mulheres da classe trabalhadora, que não possuem redes de apoio bem estabelecidas e, muitas vezes, exercem o trabalho de cuidado para que outras mulheres possam entrar no mercado de trabalho formal. “Pensar no perfil de uma mulher que é mãe, trabalhadora, é pensar que ela tem milhões de barreiras para superar para conseguir se candidatar, se eleger e permanecer na política”, afirma Sâmia.
. “As mães estão exaustas, sobrecarregadas, elas não têm tempo, muitas não contam com rede de apoio, faltam vagas nas creches, falta remuneração para que elas possam exercer esse cuidado. Muitas são abandonadas, elas e seus filhos, pelos genitores”, diz. “Se não há um amparo para que elas possam nem sequer garantir o cuidado, que dirá atividade no mercado de trabalho e na vida política”.
. A participação de mães nos espaços de poder não é apenas uma demanda por representatividade. A construção de políticas públicas que atendam a necessidade do cuidado é um tema que pode ser mais bem elaborado por quem exerce esse papel e sente na pele as barreiras. “Pensar em projetos e estrutura para que essa mulher consiga trabalhar e estudar e ainda compartilhar os cuidados da casa, ajuda e muito. Porém temos um grande desafio numa sociedade que ainda enxerga as mulheres com esse olhar do cuidado”, acredita Juliana Cardoso.
. “Não há roda do mundo que gire sem o trabalho de nós mães. Para que a vida aconteça tem uma mãe trabalhando, uma mãe levando uma criança na creche, uma mãe amamentando, uma mãe fazendo comida, passando a roupa e o terno inclusive dos deputados que estão na Câmara dos Deputados. É preciso reconhecer esse trabalho e essas questões que envolvem a maternidade precisam também estar expressas no Congresso Nacional”, acredita Talíria.
Assine as notícias da Guatá e receba atualizações diárias.