“As temáticas que mais importam são sociais. E não olhar para isso é uma postura social. A indiferença é uma postura social, também.” – Foto: John Alex
Em uma rápida conversa com Paz Encina é possível perceber um apreço irresistível pelo cinema. Hoje, aos 52 anos, ela é uma das responsáveis por revelar o Paraguai para o mundo a partir do audiovisual. A mais recente produção de Paz, Eami, que retrata a história do povo Ayoreo Totobiegosode, comunidade situada no Chaco, foi premiada no 1.º Festival de Cinema Latino-Americano de Paris (CLaP) e ganhou o Tigre, principal prêmio do Festival de Cinema de Roterdã.
Paz esteve em Foz do Iguaçu para participar do XXVI Encontro da Socine, na Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA) que marcou a primeira década do curso de Cinema e Audiovisual da instituição. Na abertura do evento um público de 400 pessoas parou para ouvir a cineasta premiada internacionalmente que também tem na trajetória os filmes Hamaca Paraguaia e Ejercícios de Memória.
Guatá – Quando você começou a estudar cinema?
Paz Encina – Eu comecei a estudar cinema já grande, não fui uma menina que queria estudar cinema. Tive uma infância na ditadura com um pai opositor. Estudava música que foi importante em minha vida e foi algo que me marcou porque eu entendi que gostava de uma expressão artística. Estudei direito como todos meus irmãos, somos 5. Aí estudei comunicação, entrei em uma produtora de televisão e entendi que queria fazer cinema. Tinha 24 anos, já era grande. Fui cursar cinema na Argentina e aí ocorreu uma mudança grande na minha vida. Porque era um país como uma democracia bastante avançada em relação ao meu país. Se podia ler qualquer livro. Meus colegas tinham uma formação de colégio muito mais avançada que a minha. Me ensinaram direções, idiomas, sonidos e literatura, semiótica, pensamento contemporâneo. E me deram bases para ter um pensamento crítico e isso eu agradeço todos os dias da minha vida.
Terminei o curso com 30 anos e fiz meu primeiro filme com 33/34 anos. A Argentina nesse momento foi minha terra latino-americana.
Como é fazer cinema no Paraguai ou a partir do Paraguai?
Para mim são duas perguntas distintas, porque eu comecei a fazer cinema em 2005 com meu primeiro longa-metragem. Isso se deu a partir de um modelo argentino que era encontrar fundos na Argentina e buscar co-produtores. Pude fazer porque teve uma oficina de projetos e uma produtora Holandesa do diretor Lisandro Alonso, muito importante na Argentina, mostrou interesse no meu projeto e me colocou em contato com Lita Stantics, uma das produtoras mais importantes da Argentina. Foi encontrar naquele instante um apoio na Argentina que supriu a falta de apoio no Paraguai.
No Paraguai, não havia apoio?
Não havia apoio. Tinha um pequeno fundo de US$ 15 mil da Fundec, mas para cinema era pouco dinheiro. Então quase todas os meus longa-metragens foram feitos dessa maneira. Depois recebi apoio do estado, de Itaipu, Yacyretá, mas não de um instituto de cinema que agora temos no Paraguai, há dois anos. Então, tudo muda para o Paraguai a partir desse momento. É preciso de um apoio, sobretudo para as novas gerações. Hoje o mundo está cheio de pitch, projetos, de crianças e jovens. Acho que agora vai ter jovens que vão começar a filmar.
Essa realidade do apoio ao cinema no Paraguai mudou há cerca de 2 anos. Você atribui isso a que?
Na verdade, foi um trabalho conjunto de muitas organizações que se uniram para o interesse comum. Estamos lutando há 20 anos para ter essa lei de cinema, não foi tão fácil. Se deu também a partir de experiências com repercussão lá fora e para isso necessito falar de Hamaca Paraguaia; Las Herederas (As Herdeiras) de Marcelo Martinessi, que teve muita repercussão em Berlim; o sucesso de Sete Caixas; Oya, Renate Costa com Cuchillo de Palo (Faca de Pau). Também tivemos que fazer um trabalho de gestão para ver de onde sairiam os fundos, de quais impostos.
Então, podemos dizer que o Paraguai vive um bom momento no cinema?
Penso que esse boom vai chegar daqui dois anos. O forte do cinema paraguaio está muito próximo. Mas creio que há um começo no sentido que o Paraguai já tem apoio local. Nós necessitávamos de um fundo para o país, e não tínhamos nada.
Para seu primeiro filme, os fundos vieram somente da Argentina?
Eu tive três produtoras, uma holandesa, uma argentina e uma francesa e se conseguiu fundos de distintos lados do mundo. Tivemos um produtor alemão e um espanhol. Hamaca Paraguaia foi um filme que se firmou muito rápido com esforço de três mulheres, isso foi muito legal para mim.
Seus filmes têm uma base muito forte da realidade paraguaia, da vida, do cotidiano. Você gosta desse tipo de temática?
Para mim é muito importante trabalhar no Paraguai. Se em algum momento pude me ver do outro lado, sentia que queria estar no Paraguai. Mas também tem um preço muito caro porque o Paraguai não tem uma escola pública de cinema, não tem uma produção constante. Então viver de cinema no Paraguai é algo muito complexo. Eu sempre sinto que tenho sorte e é muito forte sentir isso.
“Somos países que sofremos colonizações, ditaduras, guerras, deslocamentos, sabemos muito bem o que implica poder, sobretudo do Norte. Por isso, para nós, criar cinema é criar território.” – Foto: John Alex
No Paraguai não há cursos de cinema?
Há três universidades privadas. Para mim, é um desafio pessoal que o Paraguai tenha uma escola pública.
A Unila está ajudando o cinema do Paraguai?
Eu acredito muito na Unila, primeiro porque está em uma fronteira e isso implica em muitas coisa. Depois pela quantidade de pessoas que se formam aqui e não só em cinema, em música e muitas outras disciplinas com nível altíssimo e isso me impressiona e me emociona. E também porque acredito muito na integração latino-americana, isso me importa muito.
Você acha que é possível fazer um cinema comprometido com questões sociais, alinhamento ideológico e ao mesmo tempo com uma narrativa estética para o público aceitar?
Eu acho que sim. Não sei se fiz isso, mas existe. Não acho que o cinema está separado do social e da política. Por outro lado, as temáticas que mais importam são sociais. E não olhar para isso é uma postura social. A indiferença é uma postura social, também.
Há um espaço para o cinema autoral, decolonial, feito no mercado da indústria cultural?
Sim, mas não sei se é a indústria, em si. Para nós, fazer cinema com uma gramática própria que não seja a gramática colonizadora e a alfabetização que tivemos que é do cinema norte-americano, com muita sorte europeu, isso em toda América do Sul e América Central. Essa é a alfabetização que temos. Se as pessoas vão ao cinema, esperam ver um filme de ação, rápido, de assassinato, sexo, com 4 minutos de mortes; há uma fórmula que estabelece como fazer um tipo de filme. Eu não posso fazê-lo. Mas agora, acredito que os latino-americanos devem ter uma narrativa com alfabetização própria, mas também isso é um preço que sobretudo muitos diretores decidem pagar.
Seus filmes têm uma linguagem própria?
Meu grande desafio é fazer um filme que tenha uma gramática própria, pensando no Paraguai.
O público latino-americano recebe bem esse tipo de linguagem?
Eu sempre penso que estou com muita sorte. Eu não sou do grande mercado argentino, brasileiro. Sempre estou em salas alternativas, como o Instituto Moreira Sales, o Museu de Arte Moderna. Venho de um lugar com pouca força cinematográfica, o Paraguai é muito jovem em termos de cinema, não temos um passado. É um cinema tão jovem, mas existe um cinema paraguaio que tem um lugar. Isso é um grande triunfo da minha geração.
A cineasta falou na abertura do Encontro anual da Socine, na UNILA, em Foz do Iguaçu – Foto: John Alex
Seu trabalho é mais reconhecido na Europa que na América Latina. A que se deve isso?
Foram diferentes situações. Hamaca foi algo distinto que também teve produtoras fortes e aí se deu o boom e foi o grande salto par mim. Depois me custou a manter. Chegou Eami que deu uma volta muito maior que Hamaca e eu pensei que ia me despedir do cinema; eu sempre tenho uma fantasia que vou abrir um café (risos). Filme é filme e isso se renova.
Há muitas produções migrando para os canais de streaming. Isso seria bom para aumentar a visibilidade dos filmes?
Os canais de streaming são grandes desgraças. Geram telenovelas um pouco mais caras e em termos artísticos não são muito mais. Telenovelas com super heróis da mesma maneira que via minha mãe, telenovelas da Rede Globo como Escrava Isaura para ver todos os dias, agora se espera isso com as séries. Penso que não seja uma boa plataforma. As pessoas perdem muito, a experiência em uma sala (de cinema). Se perde algo sensorial, hermoso, se tira a humanidade.
Sobre Eami, é uma história um tanto invisível. Como escolher esse tema?
Eu não escolhi tanto esse tema. Eu queria fazer uma história de amor, sobre a ditadura que foi muito pesado para mim. Queria uma história de amor clássica de um rapaz que conheceu uma moça e foram felizes. E teve um amigo que me disse, eu sei onde vai encontrar essa história, em tal comunidade. Eu não sei por que nesse momento eu não vi que seria complicado e eu segui um amigo meu de 30 anos e lá fui. A (história) era de irmãos que foram namorados e isso me atraia um pouco. Fui na comunidade e eles disseram que essa história existia mas não queriam falar disso. Fiquei um pouco cortada porque eram 8 horas de ida e 8 horas de volta de Assunção, somente em caminhonete 4 x 4. E eu disse “o que interessam falar” e foram muito rápido. Eles disseram “nos ajude a contar o que implica o nosso território. Eu pensei é falar de exílio e coisas que eu conheço. Eu pensei que ia ser um ensaio de uns 40 minutos, algo menor.
Pode falar sobre a união de cinema, território e memória da América Latina? Qual é sua visão sobre essas questões?
Para mim não são questões divididas. Para mim ao fazer cinema estamos gerando memória e nosso verdadeiro território é a memória. Por isso são três palavras juntas. E fazer cinema não está separado de criar uma mirada como latino-americanos. E somos países que sofremos colonizações, ditaduras, guerras, deslocamentos, sabemos muito bem o que implica poder, sobretudo do Norte. Por isso, para nós criar cinema é criar território.
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