Na Amazônia colonial portuguesa dos anos 1700, a mão de obra preponderante era indígena. Até a metade do século, havia formas de recrutamento de trabalhadores previstas em lei para cooptar escravos. Foi assim até 1755, quando a Lei de Liberdade dos Índios proibiu a escravização indígena. No entanto, formas ilícitas da prática seguiram frequentes, gerando significativa quantidade de cativeiros ilegais. Nesse contexto, índias e índios escravizados ilegalmente mobilizaram instrumentos jurídicos em prol da restituição de sua liberdade. É o que estuda Luma Ribeiro Prado na dissertação de mestrado “Ações de Liberdade: o uso da justiça por índias e índios na Amazônia portuguesa, século XVIII”, desenvolvida na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.
Na primeira metade do século 18, “o recrutamento de índias e índios no sertão poderia significar a formação de mão de obra livre ou a redução à escravidão”, contextualiza a historiadora. O primeiro caso se dava pelos descimentos — quando há deslocamento de indígenas de seus territórios para viverem em aldeias administradas pelos missionários. Nesse cenário, “as índias e os índios aldeados, ainda que fossem considerados livres, eram obrigados a trabalhar nos aldeamentos, a serviço dos moradores ou do rei por alguns meses em troca de remuneração. Muitas vezes ao serem repartidos para exercerem estes trabalhos temporários não eram devolvidos aos aldeamentos ou eram constrangidos a se casarem com cativos, assumindo formas de trabalho próximas à escravidão”, conta Luma.
Já os atos de recrutamento para formação de mão de obra escrava aconteciam pela guerra justa ou pelo resgate. “A guerra seria lícita quando declarada em três circunstâncias: impedimento da pregação do evangelho, prática de hostilidades contra vassalos do reino ou grupos nativos aliados dos portugueses e quebra de pactos celebrados”. Esses prisioneiros, em sua maioria mulheres e crianças, eram transformados em escravos dos vencedores. As tropas de resgate, por sua vez, eram organizadas para salvar a vida de prisioneiros de guerra e aprisionados nativos que seriam vendidos a outros povos. “Em agradecimento e ressarcimento dos custos da substituição da pena de morte, os resgatados deveriam trabalhar para o seu comprador”. Os proprietários de escravos possuíam, nesses casos, um certificado de escravização legítimo. “Além destes títulos de escravidão, as filhas e os filhos de mães escravizadas permaneciam no mesmo regime de trabalho da ascendente”, lembra a pesquisadora.
Escravizados, os índios e as índias realizavam todo tipo de atividade na Amazônia colonial: “lavravam roças de mandioca, de algodão, de cana de açúcar, de tabaco, de cacau; edificavam fortificações, igrejas e outras obras públicas; serviam como mensageiros nos correios entre as capitanias e como carregadores nas ruas de Belém e São Luís; atuavam nas salinas reais e exerciam ofícios como carpinteiros, serradores, sapateiros, artífices”, exemplifica Luma.
Relatos de época atestam que 80% da escravização na Amazônia colonial portuguesa não obedecia às determinações legais. Dominavam nesse cenário as “guerras injustas, tropas de resgate não autorizadas e a não devolução dos índios livres aos aldeamentos”, revela Luma. Segundo a pesquisadora, uma prática ilegal de recrutamento que se destacou foram as chamadas “amarrações”, que “consistiam na invasão das aldeias indígenas, ateamento de fogo nas moradas, seguida de assassinato dos guerreiros e sequestro das mulheres, dos velhos e das crianças”. Estes indígenas eram conduzidos aos acampamentos e, quando em número considerado suficiente, eram transportados até Belém e São Luís, onde eram vendidos em praça pública, acompanhados de títulos de escravização forjados.
As demandas indígenas por liberdade eram acolhidas pelo tribunal das Juntas das Missões. Então, o suposto proprietário de escravo era convocado a apresentar o certificado de escravidão. “Em caso de ausência do documento ou constatação da falsidade do mesmo, o tribunal verificava a ilicitude da escravidão e concedia a liberdade ao indígena”, conta Luma. Foi isso o que aconteceu na maior parte dos casos, já que a maioria dos escravos eram mantidos ilegalmente. A historiadora lembra, porém, que “é difícil verificar se as sentenças eram, de fato, cumpridas”. Outro ponto destacado por ela é que a liberdade destes índios “significava, quando muito, a possibilidade de escolher o patrão, a atividade exercida, o local de morada”. E conclui: “É emblemática uma sentença bastante comum que determinava que os índios ficassem ‘livres para servir a quem quiser’”.
Quanto às punições para o senhor, Luma revela que não foi encontrada nenhuma concessão de pena aos réus acusados de escravização ilícita, “embora essa fosse uma questão discutida pelos juristas portugueses no século 16 e houvesse uma determinação legal do fim do 17”. A única punição aos réus era a perda da propriedade daqueles que consideravam seus escravos.
Em sua pesquisa, Luma destaca a predominância das mulheres nas ações de liberdade: “Na Amazônia portuguesa entre os anos de 1714 e 1774, levantamos 184 registros de demandas por liberdade. Destes, cerca de 75% dos escravizados em litígio eram mulheres ou seus descendentes. Para ser mais precisa, 53% das demandas foram encabeçadas por mulheres”. O número pode ser ainda maior, já que muitos casos foram referenciados na documentação de maneira genérica, sem especificidade de gênero. No entanto, “apesar de os homens não terem encabeçado pedidos, foram vinculados às demandas das mulheres, que estendiam o pedido de liberdade para seus descendentes e aparentados”. A historiadora defende que “o predomínio de mulheres litigantes reflete o quadro populacional de maioria de cativas nas cidades e vilas da Amazônia”. E acredita, também, que “a predominância esteja relacionada à condição jurídica do ventre materno na determinação da escravidão e da liberdade. O cativeiro e a liberdade eram legados pelas mães. Ou seja, a conquista da liberdade de uma mulher deveria significar que mais de uma pessoa se tornasse livre”.
_____________________Da página Agência Universitária de Notícias / Texto:Laura Barrio
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