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Quisera eu, ser a minha mãe, texto de Gilberto Maciel
Quisera eu, ser a minha mãe, texto de Gilberto Maciel
27 de maio de 2023
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“Sigamos em frente, feitos dementes, enquanto a fruta não cai longe do pé”
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Dona Tereza, a senhora me paga, aprontou mais uma vez. Faz um ano que nos deixou e hoje bem nos dias das mães, no aniversário da minha irmã, estou novamente em prantos. Tanta dor, tanto sofrimento e desespero e só mais tarde, bem mais tarde, a ausência não preenche meu vazio hiperestésico, o qual drama é drama, realidade é drama e tudo não passa de um drama sim. Essa é a minha vida e o que vou deixar para trás.
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Inda mais eu, na ingenuidade da minha alma, acrescento dois olhos miúdos, cantando Gianni Morandi que acabei de assistir no Cine Star, achando que no fim tudo ia dar certo: seríamos felizes, plenos, derrotando as injustiças qual os filmes de cowboys. Sabe, eu nem sei como a melancolia me empurrou para um apocalipse now e um blade runner e me tornou tão niilista sob tamanha barbárie distópica que a maioria enfrenta dia a dia?
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As imagens de uma infância sublimada ainda me perseguem ao percorrer passando a mão no ouro coberto de marçalhinas que tomava conta, todo ano, do lado esquerdo da nossa casa, das frutas como as laranjas, mandarinas, abacates, cachos de vespas, dos gatos ariscos criados sob os madeirames, das galinhas chocas protegendo seus pintainhos, do bob, da sarita, do loro, da confiança, das pulgas debaixo da casa e dos piques nos pés.
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Tudo no mundo meio apavorado, medroso e dolorido como o miticoçan que queimava a pele molhada para se livrar da sarna e do pouco afeto, carinho e o manto de brutalidade que a fez lutadora, guerreira, dona do seu tempo, um matriarcado que não levava desaforo para casa seja de quem fosse.
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Lembro-me do último almoço, todos juntos, nos seus 91 anos, rindo e comendo o nosso cardápio favorito dos domingos: macarrão, galinha caipira, maionese, arroz de forno, mandioca e batata doce. Meu irmão mais velho, lembrou da cinta que desceu seu lombo quando tirava água do poço e eu galhofeiro disse – imagina, a mãe nunca fez isso. Todos rindo e a senhora a chorar.
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Triste, minha mãe, porque hoje tudo se esvai, a memorabília fica restrita aos meus parcos textos, fotografias amareladas e envelhecidas que as postamos nesse quadro de memória afetiva que hoje alcança as redes sociais. Ficamos reféns do monstro que criamos e alimentamos a procura de amigos, colegas, amores perdidos e do nosso passado.
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Mãe você se foi e me deixou só aqui nesse dispênio irresoluto. Mais uma vez, talvez como sempre, perdido, redentor de uma causa perdida, onde os mais próximos desconfiam e não acreditam no um mais um, se movem em resultados rápidos e eu, fugidio, passo a vida a maldizer.
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Queria muito ter a sua perseverança e fé, clareza do destino, apesar de tudo que enfrentou desde a cobiça de muitos e a imaturidade dos mais próximos.
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Corremos apressados, num fiapo de vida, mas eu lembro muito bem dos pastéis e canudos de maionese feita para os bailes e carnavais do Oeste Paraná Clube. E das idas ao goiabal para apanhar as goiabas em toalhas de mesa para fazer chimia e de catar as marcelas nas barrancas do rio Paraná.
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Marcela, como já disse em outro texto, fazia parte da farmacopeia que incluía hortelã, maçanilha, quebra-pedra, malva, broto de goiaba, folha de laranjeira, alho, cebola, limão, banha de porco, mel, mais o leite magnésia, caladryl e outros unguentos. Com os panos brancos da Dona Délia e as rezas da Dona Rosinha curavam as feridas, espasmos e dores de toda ordem.
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Mãe eu morria de vergonha, e como, a cada vez que a senhora vestia uma calça e de escada se punha a pintar a nossa casa, geralmente de azul. Também tinha vergonha dos seus desaforos, brigas e de lavar roupa para fora, como dizíamos. Alias, mãe, eu eu cara envergonhado de quase tudo, desde a nossa condição de pobres e miseráveis e que tinha que conviver com meninas abastadas que com suas mães vinham trazer as trouxas de roupas para lavar.
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Que besta era eu, mas nessa pequena idade e sem muita informação, dissociado do contexto em que vivíamos. O mundo nunca foi justo ou igual para os mais pobres. À tarde, com o sol se pondo, descobri quais diferenças que marcam a linha do tempo de todos com inabalável e fecunda disposição.
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Mãe, crescemos assim, meio desgarrados, mas com uma identidade e jeito próprio. Uma vez, um amigo disse como nosso andar era igual e distinto, assim como tínhamos um vocabulário próprio – como pode, uma família ter seu linguajar único.
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Pouco tempo depois, o contradisse com uma outra realidade. A nossa cidade, como a maioria, apesar de seus fantasmas no armário, não aceitaria o filho de uma lavadeira, de um nordestino, de um açougueiro ou operário. Tínhamos que cumprir o papel que nos foi reservado e nunca, sob hipótese alguma, almejar qualquer tipo de protagonismo se não fizesse o jogo de esconder seu passado.
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Minha mãe, você me ensinou pelo avesso tudo o que sou e hoje, exilado, tenho a forte compulsão de um estalar de dedos como Kronos mudar o sentido da vida, do bem querer, do apoio e da ajuda não importa a quem. Mas quem dera, sou sanguíneo igual a você, e quando o sangue sobe nas veias e sou a infalível dona Tereza, meu próprio herói e meu próprio bandido.
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José Gilberto Maciel, iguaçuense, é poeta e jornalista em Curitiba, Pr.
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