O discurso da comida saudável consta em qualquer revista e até mesmo propagandas sobre os mais diversos alimentos. Mas será que o que você e sua família estão ingerindo é de fato livre de agrotóxicos ou modificados geneticamente?
Em entrevista para o portal Brasil de Fato, Gilberto Schneider, que faz parte da campanha internacional da Via Campesina sobre as Sementes Crioulas, explica o que elas são e qual é sua importância para um futuro com uma alimentação mais saudável.
Atualmente está em curso uma campanha da Via Campesina de valorização dessas sementes que são livres de agrotóxicos, pesticidas ou modificações realizadas pela ciência ou pelo agronegócio.
Em resumo, é de fato, um alimento que faz bem para quem o consome. Na entrevista, Schneider não apenas explica a importância dessas sementes, mas como consumir alimentos advindos dessas semente. Confira abaixo a entrevista:
Brasil de Fato: O que são as sementes crioulas?
Gilberto Schneider: As sementes crioulas são todas as possibilidades que você tem de multiplicação de qualquer vegetal seja através de grãos, de uma rama, folha, flor, fruto, da própria raiz, do caule. As sementes crioulas são todas as formas possíveis de multiplicação dos vegetais, inclusive, na própria Via Campesina e nas organizações sociais a gente tem construído que as sementes crioulas também abrangem toda forma de reprodução de vida, que possa possibilitar a vida, inclusive dos animais, dos polinizadores, dos microorganismos que são tão importantes também para que no futuro a gente possa garantir uma alimentação saudável, diversificada e de qualidade.
Muitas dessas sementes deixaram de existir com o que a gente chama de Revolução Verde?
Sim, as sementes crioulas sofreram um forte impacto com o modelo de agricultura da revolução verde, que foi um modelo de substituição basicamente das sementes que eram produzidas, conservadas, melhoradas, multiplicadas pelos agricultores pelas sementes híbridas, depois pelas sementes geneticamente modificadas conhecidas como transgênicos, que são produzidas pela ciência ou empresas privadas. Nesse processo de substituição das sementes veio todo um pacote tecnológico com insumos: fertilizantes sintéticos, pesticidas, agrotóxicos que tão mal fazer para a nossa saúde.
Isso fez com que vários territórios onde antes eram cultivadas sementes crioulas fossem ocupados por monocultivos de plantas comerciais e com isso várias famílias deixaram de plantar as sementes crioulas. Com essas famílias abandonando essas sementes para adotar um pacote que foi imposto, um pacote da revolução verde, acabaram que muitas variedades que estavam nas mãos de poucas famílias desapareceram.
Se a gente pegar um exemplo concreto, a diversidade de milhos era muito grande e hoje boa parte se perdeu e algumas correm o risco de extinção, porque estão nas mãos de poucas famílias, que ainda conservam a agrobiodiversidade, que ainda trabalham com o sistema da agroecologia e de produção de alimentos saudáveis.
Se levarmos em conta a linha de abóboras, melancia, melão toda essa área também foi afetada com grandes perdas. Basicamente, as famílias que cultivavam essas variedades, as cultivavam em meio a outras culturas e com o uso de agrotóxicos, elas foram eliminadas aos poucos, porque não tinha mais espaço na propriedade para se produzir e com isso, então, se perdeu essa diversidade de sementes. Logo, a perda é bastante significativa.
Hoje, basicamente, os grãos plantados – cerca de 90% – são cinco ou seis grãos que são plantados no mundo, mas graças a agricultura camponesa ainda se tem uma grande diversidade preservada e graças também às ações dos movimentos sociais, os trabalhos e ações concretas como a campanha da Via Campesina “Semente patrimônio dos povos à serviço da humanidade” tem se possibilitado salvar da extinção várias variedades dessas sementes.
Com relação, em específico, a questão do milho. No Brasil inteiro se consome o cuscuz das mais variadas formas. De que forma consumir esse alimento de maneira que ele não seja transgênico. Isso é possível?
As grandes culturas, que são produzidas em larga escala como milho, soja, trigo, arroz foram as culturas mais impactadas pela Revolução Verde e também pela introdução dos transgênicos e o milho ainda mais, porque o milho se trata de uma planta de polinização aberta. O que isso significa? Que ela pode cruzar entre si até um quilômetro de distância entre uma lavoura ou outra ou mais dependendo da existência de ventos, de insetos.
Então, o milho tem uma situação muito complicada para conviver com o milho crioulo pela presença dos transgênicos, por essa possibilidade grande de contaminação. Os feijões, por sua vez, são de polinização fechada, então, têm menos problema de contaminação assim como a soja, porque ambos polinizam muito pouco entre plantas.
Nesse sentido, o milho é uma cultura muito afetada. Vários pratos típicos ou culturais da gastronomia dos nossos povos está afetado pela não disponibilidade de quantidades de milho crioulo. Não é que não tenha mais variedade ou que elas tenham desaparecido por completo, mas elas estão muito isoladas em poucas comunidades, que ainda conservam essa biodiversidade.
É preciso hoje ação concreta, mais forte, de multiplicação dessas sementes para que elas cheguem a mais agricultores para produzir, para gerar futuramente um cuscuz não transgênico, porque o grande foco das sementes crioulas não é por si só preservar a biodiversidade, mas sim, produzir alimento de qualidade, saudável, nutritivo. É para isso que a gente trabalha.
De que forma as sementes crioulas fortalecem a autonomia camponesa e quais os projetos desenvolvidos atualmente nessa área?
As sementes crioulas assim como o acesso à terra e à água são questões fundamentais para definir o que o agricultor vai produzir, em que período vai produzir e que modelo de tecnologia vai adotar.
As sementes crioulas cumprem um papel fundamental no sentido de dar autonomia ao agricultor de escolher o período certo, porque a semente já está nas mãos dele. É uma semente adaptada ao território, ao clima da região, então, isso possibilita também trabalhar de forma agroecológica em um modelo sustentável de produção alimentar, porque essa semente está adaptada às condições de climáticas onde ele convive. E em decorrência de ser uma semente adaptada a essa realidade, ela diminui muito o custo do agricultor. Logo, aumenta o que a gente chama de autonomia, que é a condição de produzir sem depender do mercado externo, dos bancos ou às vezes até mesmo das próprias políticas públicas, que são tão escassas para a agricultura camponesa.
Nesse sentido, as sementes crioulas são fundamentais no processo de construção da autonomia para os pequenos agricultores, para as comunidades tradicionais, para os camponeses e camponesas do Brasil e também do mundo.
Na segunda questão, os principais projetos desenvolvidos dentro da Via Campesina Internacional, que congrega mais de 160 organizações de mais de 60 países do mundo, são a nossa campanha que é a campanha “Semente patrimônio dos povos à serviço da humanidade”, que tem uma ação que é de denúncia do agronegócio, dos agrotóxicos e dos agroquímicos das transnacionais. E por outro lado tem ação concreta que é de produzir e conservar, multiplicar e distribuir as sementes crioulas.
Nesse sentido, a Via Campesina está trabalhando uma nova proposta aprovada no congresso da Via Campesina em Bilbao, no ano de 2017, que se chama “Adote uma semente” ou “Adopta una semilla”, em espanhol, que é uma ação em que a gente convoca e convida todas as organizações da Via Campesina e a todos os camponeses e camponesas afiliados e associados a adotarem, no mínimo, uma variedade de semente para que nenhuma variedade mais seja perdida.
Temos informações de que já há uma perda grande de biodiversidade e a nossa estratégia propõe que nenhuma variedade mais seja perdida, porque essas variedades significam diversidade e qualidade de alimentos no futuro da humanidade e dos povos. E por meio dessa estratégia, a ideia é construir a Casa das Sementes para conservar a nossa biodiversidade.
Casas territoriais de semente para a gente multiplicar, distribuir até as unidades territoriais, que possam construir escalas de sementes para atender a demanda das políticas públicas, atender a demanda das comunidades. Hoje, pela situação de mudanças climáticas às vezes as comunidades acabam perdendo a sua base produtiva – que é a base genética da semente – e precisam ser acessadas novamente para ser ser produzidas em algum território e às vezes colocada, novamente, à disposição.
Então, as casas de sementes cumprem também um papel fundamental em conservar por mais tempo essas sementes para que a gente não tenha mais nenhuma variedade perdida, porque elas são fundamentais para alimentar o mundo nos próximos períodos.
De que forma podemos saber se o alimento que estamos consumindo é advindo de uma semente crioula? Há meios de fazer essa identificação?
Essa possibilidade existe quando a gente consegue comprar direto do agricultor ou em uma feira ou através da cesta de alimentos organizada pelos agricultores ou ainda pelas cooperativas de agricultores. Na venda direta, eles podem informar que o alimento tem origem em semente crioula e quem sabe essa poderia ser uma solicitação do público consumidor para que nas embalagens dos produtos constasse que o alimento é produzido com base em sementes crioulas.
Acredito que seria uma iniciativa bastante importante – não conheço se tem alguma iniciativa nessa área – porque possibilitaria que os consumidores identificassem a origem da semente que gerou aquele alimento.
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