Os incêndios no Pantanal destruíram, até o início de outubro, mais de 29.000 quilômetros quadrados de fauna e flora, quase 19% de um dos principais biomas do Brasil (área equivalente ao Estado de Alagoas). Em 2020, foram registrados mais de 15 mil focos de incêndio, o maior número em 21 anos. Além disso, o Pantanal passa por uma das maiores secas da história. Com a escassez hídrica, o Rio Paraguai, o principal do bioma, atingiu o menor nível em quase cinco décadas.
Uma situação devastadora para a maior área úmida em extensão do planeta, que se espalha também pela Bolívia e Paraguai. “É uma área imensa perdida. Existe a resiliência natural, mas o tempo de recuperação vai ser muito longo, principalmente por conta da proporção desse incêndio. Fisionomicamente, para voltar a ter uma estrutura parecida, para os ciclos específicos voltarem, pode demorar uns 40 anos”, estima o biólogo e professor da UNILA Cleto Kaveski.
O pesquisador, que fez sua graduação em Ciências Biológicas na Universidade Estadual do Centro-Oeste e tem doutorado em Biologia Vegetal, explica que o Pantanal era, até o início dos incêndios, o mais bem preservado entre os maiores biomas brasileiros. “Por ser uma área de grandes nascentes, das nascentes do Rio Paraguai, é um bioma alagado. Essa é a razão de ele ser, até então, um bioma íntegro, porque tinha difícil acesso”, explica.
O Pantanal é considerado um complexo de ecossistemas. “O Pantanal é uma região bem especial. É um bioma bem único.
Tem um conjunto de fisionomias, uma interface muito grande. É como se fosse o coração dos biomas: tem uma ligação com a Amazônia; uma ligação forte com o Cerrado, a região savânica brasileira; tem um pouco de características estépicas, de floresta seca, pelo seu contato com a região do Chaco paraguaio”, descreve Cleto.
A recuperação total das características que fazem do Pantanal um bioma tão único é muito difícil, diz ele. “Algumas espécies, seguramente, vão ficar para trás. As grandes espécies, que ocorrem em outros biomas, acabam voltando, mas tem espécies endêmicas, muitas que talvez a gente nem conheça, que vão desaparecer”, lamenta, lembrando que ao redor do Pantanal se encontram áreas agrícolas que dificultam a existência de um “banco de sementes” – sementes que existem no solo e que possibilitam a recuperação natural de áreas degradadas. “Quando se queima essa região, que já é fragmentada, não tem de onde vir sementes, espécies a serem repostas, a própria resiliência do ambiente fica comprometida.”
Para alguns, a forte seca registrada no Pantanal é uma condição facilitadora da rápida expansão do fogo – provocado por ação humana direta (ou antrópica), como apontam investigações. Cleto Kaveski considera possível a influência desse fator, mas diz que os efeitos das mudanças climáticas são evidentes nesse caso e que, provavelmente, também implicaram nos incêndios registrados recentemente na Austrália e nos recorrentes incêndios da Califórnia (Estados Unidos), não no início do fogo, mas nas proporções que alcançam e na frequência com que ocorrem. “O incêndio no Pantanal não é só culpa das pessoas que colocaram fogo, mas é uma culpa humana no sentido das mudanças climáticas que estão acontecendo, principalmente a alteração da Amazônia”, aponta.
Segundo ele, as perdas diárias na Amazônia já são suficientes para provocar alterações no clima das regiões Centro-Oeste, onde está localizado o Pantanal, Sudeste e Sul do Brasil. “O que está acontecendo no Pantanal impacta, mas não surpreende os pesquisadores que estudam o regime climático na Amazônia”, diz, explicando que os “rios voadores” – uma enorme quantidade de umidade e aerossóis produzidos na Amazônia – se deslocam na direção sul, provocando as chuvas que “abastecem” o Pantanal e fazem dele uma área alagada. Outra parte desse rio se desloca para o Sul e o Sudeste do Brasil. São esses rios que garantem também a umidade natural na região de Foz do Iguaçu.
“Com a perda diária da Amazônia – isso é interessante porque não precisa perder toda a Amazônia – perde-se completamente esse fluxo de água. A destruição cria regimes climáticos que não deixam essa água chegar até aqui”, completa.
Em um país cheio de recursos naturais como o Brasil, diz o pesquisador, muitas pessoas não conseguem associar crises hídricas, perdas na lavoura e outros acontecimentos, com as alterações do clima e seguem negando sua existência. “A mudança climática é um fato. Ela é polêmica no senso comum, mas cientificamente é um fato. Ninguém dúvida disso”, afirma.
Variações climáticas são naturais, com ciclos de grandes volumes de chuva ou extensos períodos de seca. “Mas uma coisa que é muito clara, que fica bem evidente, é que esses fenômenos de extremos climáticos estão muito mais frequentes. Gerações passadas se lembram, talvez, de quatro ou cinco eventos. Nos últimos dez anos, podemos contar também quatro ou cinco eventos extremos”, comenta, citando como exemplo, os recordes de altas temperaturas deste início de primavera, que superam outros recordes registrados em anos muito próximos.
Para o pesquisador, nossa civilização tem um comportamento completamente predatório, baseado na exploração dos recursos naturais até o seu limite. “Nosso modo de vida planetário, hoje, está fadado ao fracasso total”, afirma. No Brasil, as pessoas estão sendo estimuladas, pela falta de punição, a incendiar e devastar áreas de floresta por interesses econômicos, para a implantação de áreas agrícolas e de pastagem, comenta o professor, lembrando que existem formas mais sustentáveis de exploração. “O início das queimadas é consequência política claríssima. São pessoas incentivadas, que sabem que podem fazer porque não vai haver consequências.”
A solução para o fim da destruição de nossos biomas – Amazônia e o Pantanal, principalmente –, para Cleto, passa pela atuação política, mais do que por ações individuais de cuidados como redução de consumo de produtos ou alimentos, como a carne, por exemplo, pela reciclagem de materiais ou cuidados com a água. “Lógico que qualquer coisa que você faz, quando toma alguma atitude, é importante, mas efetivo mesmo não é. Efetivo é fazer pressão. Acho que atuar politicamente, para mim, é uma das coisas mais importantes”, analisa.
“As pessoas têm a percepção de que temos grandes áreas verdes, que é muito, mas não. O que a gente tem é um capital de biodiversidade absurdamente rico e a gente está colocando fogo. Esse é um patrimônio, um recurso que é público, que é de todos, e nós estamos deixando que seja roubado por poucos. Isso é uma coisa que a gente tem de começar a se conscientizar também como população. É importante atuar politicamente para guardar isso”, estimula.
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