Para o escritor precisamos da utopia para viver, sobreviver e para dar sentido – Divulgação
“Minha vida mudou a partir da leitura, não mudou a partir da escrita. Minha vida mudou porque eu me tornei leitor, e como fui professor durante muitos anos, acreditei nisso enquanto estava lecionando. Achava que conseguiria modificar a vida daqueles alunos através da leitura.”
Vencedor do Prêmio Jabuti em 2021, com o livro O Avesso da Pele, Jeferson Tenório fala de modo que parece um bálsamo em um país que não tem na literatura um de seus principais interesses. Pouco mais da metade dos brasileiros cultiva o hábito de ler, como nota a 5ª edição do estudo “Retratos da Leitura no Brasil”.
Carioca, radicado em Porto Alegre e morando atualmente em São Paulo, desde 2021 se dedica quase que exclusivamente à carreira de escritor, permeada pelas colunas no portal Uol Notícias e a tarefa de editor na Diadorim Editora.
Em Porto Alegre, para um evento na 69ª Feira do Livro de Porto Alegre, Jeferson Tenório conversou com o jornal Brasil de Fato RS sobre o momento atual da literatura e da sua carreira.
Brasil de Fato RS – Nossa última conversa foi em outubro de 2021, também aqui na Feira do Livro em Porto Alegre. O cenário hoje é completamente outro. Naquela época, passávamos por uma pandemia e um pandemônio. E hoje? Como avalias esse cenário que vivemos, tanto politicamente quanto em termos literários?
Jeferson Tenório – Em 2020, quando fui patrono da feira, circulei pela praça vazia. As atividades foram todas online. Mas também foi um momento de mudança da feira. Foi a primeira vez em que a gente teve mais diversidade nas atividades. Havia muito mais negros, mulheres, indígenas naquela edição de 2020.
Acho que a presença desses autores foi se naturalizando. Hoje temos já uma diversidade de fato, não só na feira do livro, mas em outros festivais também. Houve essa mudança de perspectiva. Também tem a ver com as mudanças políticas que tivemos. Acho que veio pra ficar.
Achava que ia me aposentar como professor em escola pública. Veio a escrita e bagunçou tudo
Tua carreira também mudou bastante. Ganhaste prêmios, teus livros estão sendo traduzidos no exterior. Como está esse momento para ti?
Até 2021, eu ainda atuava em escolas aqui em Porto Alegre. Em função das viagens, dos compromissos relacionados ao livro, principalmente ao Avesso da Pele, não consegui mais continuar na escola. Me mudei para São Paulo, lá entrei de sócio numa editora.
Ocupo a minha vida com a escrita e com a leitura de originais agora com a editora. Meus livros sendo traduzidos e eu sendo chamado para esses países onde estão publicando. É curioso porque, até pouco tempo atrás, achava que ia me aposentar como professor em escola pública. Era o meu ideal de trabalho ao longo do tempo. Mas aí veio a escrita e bagunçou tudo. Melhorou.
Tenório participou recentemente da 69ª Feira do Livro de Porto Alegre, em uma conversa com a pernambucana Nathallia Protazio e o escrito Itamar Vieira Júnior – Foto: Eduardo Fernandes/Feira do Livro Porto Alegre
Na época, estavas fazendo o teu doutorado. Já terminou?
Sim, no ano passado.
Porto Alegre é uma das cidades onde se passa o (novo) romance e no ambiente acadêmico.
E também estavas escrevendo um novo romance. Seria sobre a universidade pública, a questão do ensino. Este romance ainda está sendo produzido?
Ainda. Se tudo der certo e eu conseguir ter mais tempo para escrever, deve ficar pronto no ano que vem. Acho que, no ano que vem, teremos aí um romance novo que se passa também em Porto Alegre. É uma das cidades onde se passa o romance e o ambiente vai ser o ambiente acadêmico.
E tratando de toda essa questão das cotas, da presença negra na universidade?
Não só. É um dos temas que perpassam o personagem. Minha ideia é contar a trajetória de três estudantes na universidade. As mudanças que começaram a acontecer em meados dos anos 2000, a entrada de pessoas negras na universidade, e todas as mudanças epistemológicas, bibliográficas, as discussões que começaram a partir dessa entrada. É isso que quero tentar discutir.
Não conseguimos ainda encher as nossas mãos para contar os autores negros que temos e são valorizados
E vieste à feira justamente para um evento junto com o Itamar Vieira Junior, que é outro escritor dessa nova geração de escritores negros, e que estão influenciando muito a literatura brasileira…
A gente está vivendo uma espécie de primavera literária negra. Temos aí uma constelação de autores que estão sendo celebrados, lidos, premiados, e acho que isso tem que ser comemorado. Temos a Conceição Evaristo, a Eliana Alves Cruz, a Cidinha da Silva, o Paulo Lins.
Uma série de escritores que tem feito diferença por trazer narrativas que, por muito tempo, não eram valorizadas. Por outro lado, se você olha para a história da literatura e para a quantidade também de autores que temos, ainda é pouco.
Não conseguimos ainda encher as nossas mãos para contar os autores negros que temos e são valorizados. Há um caminho a percorrer, mas também é um momento de celebração.
Em uma entrevista falaste da literatura como um direito humano e de como a literatura pode transformar vidas…
É uma fala muito apoiada no texto do (sociólogo e crítico literário) Antônio Cândido. Ele fala sobre isso: a literatura como um direito básico. Acredito nisso porque a minha vida mudou a partir da leitura. Não mudou a partir da escrita. Minha vida mudou porque me tornei leitor.
Como fui professor durante muitos anos, acreditei nisso enquanto estava lecionando. Achava que, de fato, conseguiria modificar a vida daqueles alunos através da leitura. É realmente um momento bastante importante quando alguém se torna um leitor.
E essa forma de mudar a vida dos alunos e entrar com a literatura mais fortemente nas comunidades, também vai gerar novos escritores. Como temos aqui o José Falero, que vem de uma comunidade carente de Porto Alegre.
Vai, pelo menos, proporcionar esse acesso aos livros. Não só o acesso, mas também mediar essa relação com o livro. O professor é um desses mediadores. As bibliotecas comunitárias, as livrarias, as feiras de livro, todos esses espaços, servem também como mediadores de leitura, aproximam o leitor do livro.
São Leopoldo tem uma feira do livro e uma política pública interessante: dá vouchers de R$ 60 para toda a rede escolar municipal, estudantes, professores e funcionários adquirirem livros na feira. E os livreiros devem dar um percentual do valor das vendas em livros para as bibliotecas escolares. Achei muito interessante essa política pública para incentivar a leitura…
Devem ser políticas públicas que sejam políticas de Estado e não de governo. Porque muda o governo e essas políticas são esquecidas. São incentivos que devem virar lei para que as pessoas consigam acesso aos livros. E que isso seja natural e comum na vida das pessoas. O livro precisa ter essa normalidade. Não pode ser uma exceção. Não se pode esperar uma feira acontecer para que isso aconteça. Tem que ser algo que faça parte do cotidiano das pessoas.
Você pode ter o celular e pode ter o livro. A gente já perdeu a briga com o celular, não há mais o que fazer
Aí, fico pensando: como fazer isso neste momento em que as crianças já nascem com o celular na mão? Em que adolescentes estão o tempo inteiro no celular, mesmo adultos? A gente acaba lendo muito pelo celular e abandonando o livro. Então, é uma concorrência difícil.
Vejo como concorrência, mas também vejo como uma ideia de concomitância. Você pode ter o celular e pode ter o livro. A gente já perdeu a briga com o celular, não há mais o que fazer.
Agora, o que se pode tirar disso? Se estão lendo mais pelo celular – que era o que meus alunos faziam – eu tentava inserir o celular no meu ensino de Literatura ou de Língua Portuguesa. Porque as plataformas vão continuar vindo. Se não for o celular vai ser outra coisa. O livro físico não vai acabar. Tem uma vida muito longa ainda pela frente. Mas é preciso saber as dosagens e ter essa ideia de concomitância.
Entraste no mundo editorial onde tem esse debate sobre a dificuldade das editoras, de vender os livros. Como está sendo isso?
Primeiro acabei ocupando o lado de quem edita, de quem recebe o texto, de quem propõe coisas no texto, essa parte é muito legal, a conversa que você tem com o autor. Depois, com toda a feitura do livro, você começa a entender os processos, quantos profissionais estão envolvidos, até chegar na livraria.
Tudo isso faz com que eu tenha uma visão mais completa do que significa editar um livro até ele chegar na mão do leitor, pensar na capa…
Acho que o mercado está muito mais aberto. Existem muitas editoras pequenas e médias. Não que esteja mais fácil, mas acho possível manter uma editora com textos de qualidade e fazendo uma distribuição satisfatória.
“A literatura faz com que você tenha um outro olhar sobre a vida, um olhar talvez mais honesto” – Foto: Alexandre Garcia
Estamos em novembro, o mês da consciência negra. Mudou-se o governo (no país), mas o racismo estrutural continua. Existe uma rede de ódio muito forte. Como continuar trabalhando mais profundamente esse tema?
A rede de ódio já foi instalada e acho muito difícil que se consiga voltar àquele estágio onde esse ódio estava no subterrâneo. Agora ele está posto. Mesmo com a mudança de governo continuam as ações reacionárias. Penso que a literatura e a arte têm alguns dispositivos que nos ajudam, de certo modo. a resistir a isso.
Muitas vezes esperam de autores negros uma violência, um grito, uma brutalidade. Quando a gente responde de outro jeito, com delicadeza, com arte, com literatura, você também está resistindo. De outro modo, mas também está resistindo.
A rede de ódio já foi instalada e acho muito difícil que se consiga voltar àquele estágio onde esse ódio estava no subterrâneo
E o mês de novembro é esse mês da consciência negra que alguns dos meus pares dizem que é o ´mês da paciência negra`, porque temos que ficar explicando o básico para as pessoas. Mas acho muito válido que tenhamos esse mês, essa data específica para oferecer uma reflexão para as pessoas e que as pessoas também reflitam sobre a sua postura diante do racismo.
Pessoas que acabam sofrendo violência são trazidas para o teu trabalho. A literatura não denuncia como o jornalismo, mas é capaz de causar uma reflexão mais profunda do que a própria notícia. Dizes que a literatura deve desnaturalizar o banalizado. Como é isso?
A literatura faz com que você tenha um outro olhar sobre a vida, um olhar talvez mais honesto. É um olhar que faz com que você perceba aquilo que é naturalizado tem a ver com as violências, tem a ver com o preconceito.
No caso do meu livro O Avesso da Pele, muitas pessoas brancas que lêem o livro, quando me dão o retorno falam isso. Não tinham ideia do grau, da sofisticação do racismo, até onde ele chega. A literatura tem esse papel também, um papel formativo. Instrui, mas não instrui de maneira objetiva. Instrui de maneira mais subjetiva. É um mecanismo bastante importante.
Lembro que quando li O Avesso da Pele, fiquei muito impactada. Havia momentos em que tinha que parar de ler porque não conseguia. Como que foi para ti, como te sentias escrevendo?
Geralmente as coisas que eu escrevo em termos de ficção, são temas que já trabalhei internamente. Jamais vou escrever algo muito próximo ou situações muito próximas no tempo. Preciso elaborar essas questões para depois, talvez anos depois, conseguir escrever.
Quando sento para escrever estou mais preocupado com os arranjos estéticos e linguísticos que preciso para fazer o livro. Por mais dura que seja uma cena ou por mais dolorosa que seja, não me afeta enquanto pessoa porque já trabalhei isso internamente.
Quando estou ali na frente escrevendo – não que eu seja uma pessoa fria, não é isso – não há o sofrimento da escrita. Há uma alegria da escrita. Aquilo já foi elaborado, então eu consigo escrever.
As coisas que me aconteceram enquanto homem negro no Sul não eram por um sentimento individual. Era uma experiência coletiva
Dizes que é preciso prestar atenção nas coisas que tem acontecido no Brasil. Que, para contar uma boa história, é preciso olhar ao redor, para ser universal você tem que falar dos que estão perto. Isso me lembra aquela velha máxima: ´Pensar globalmente, agir na aldeia, localmente`.
É porque o escritor, o trabalho dele, é observar, ouvir, e essa observação não é só dos outros, mas de si mesmo. E aquilo que parece muito particular é o que muita gente sente.
No caso do Avesso da Pele acho que tem um pouco isso. As coisas que me aconteceram enquanto homem negro no Sul do país não era por um sentimento individual, por mais específico que fosse. Era uma experiência coletiva.
Prestar atenção em si e prestar atenção nas pessoas ao seu redor é uma forma de você narrar coisas universais justamente porque o que nos une é esse sentimento de humanidade.
Lembro quando lia também ia me identificando com alguns lugares do livro, como Santa Catarina. Quem na adolescência do Sul na década de 1980 não passou por aqueles lugares? Também nos aproxima da história.
Nos aproxima porque O Avesso da Pele não é um livro sobre o racismo. É um livro sobre as relações pessoais, sejam as relações entre pai e filho, entre professor e aluno, os relacionamentos afetivos, isso transcende as questões raciais, então causa uma identificação também nas pessoas.
Como avalias a presença do Ailton Krenak na Academia Brasileira de Letras, o que pode impactar naquele espaço?
A eleição do Krenak foi importantíssima e quem sai ganhando é a Academia. O Krenak também, mas acho que ele agrega um saber e uma espécie de volta às origens, ao que é o Brasil e como foi fundado. Krenak é esse representante das nossas origens, da ancestralidade.
A Academia já poderia ter feito outras escolhas nesse sentido, mas acho que é um momento de celebração, de a gente entender que é um lugar de validação de conhecimento. Você ter um autor indígena, que se reconhece como indígena, é importante porque você tem ali uma instituição centenária que valida aquele saber.
Que autores estás lendo?
Tenório – Tenho lido um pouco de literatura contemporânea, livros do Tobias Carvalho, um escritor gaúcho, uma escritora baiana chamada Luciane Aparecida, que escreveu um livro chamado Mata Doce. Estou tentando diversificar um pouco a minha leitura, tentando ler autores nordestinos, do Norte, do Sul, evitando um pouco esse trânsito Rio/São Paulo.
Imaginar é uma questão de sobrevivência. Imaginar é um modo de resistência
Considero o Valter Hugo Mãe um dos grandes escritores da contemporaneidade. Ele traz muito do Saramago também. Ele te inspira?
A literatura portuguesa em si me inspira. Me tornei especialista em literatura portuguesa. Tanto o Valter como o (José) Saramago, o (José Luis) Peixoto, Fernando Pessoa, Gil Ferreira, são muitos autores que me influenciaram.
Valter se tornou um amigo também. A literatura dele é de um tipo que funda uma língua portuguesa. Ele oferece outra forma de escrever a língua portuguesa, assim como o Saramago, assim como o Guimarães Rosa, que vão criando uma linguagem. Sorte nossa ter esses autores por perto.
Qual a importância da literatura para a gente imaginar outro mundo?
Talvez a melhor forma de resistir diante de um mundo sombrio seja imaginar. Principalmente para as populações que sofrem uma opressão, a população negra, periférica. Conseguir vislumbrar um futuro, imaginar para além da semana que vem. Pegar um moleque de 12 anos e ele conseguir vislumbrar anos depois o que ele vai ser.
Acho que a literatura contribui para essa imaginação. Imaginar é uma questão de sobrevivência. Se você não enxerga o seu futuro a longo prazo, a impressão que você tem é que a sua vida não vale nada.
Para sua vida valer alguma coisa você precisa projetar o seu futuro e de uma maneira bastante longa. É preciso imaginar como vou estar daqui a 10/15/20/30 anos. Imaginar é um modo de resistência.
Então utopia não é uma palavra em desuso?
Nunca foi. Querem nos fazer acreditar que é ultrapassada, mas precisamos dela para viver, sobreviver e para dar sentido também.
(*) Com a colaboração de Fabiana Reinholz
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