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Os astros celestes costumam brincar no céu da Passarela do Mundo. Na virada de março para abril, duas Luas se encontraram na porta de entrada da floresta, na sombra do estacionamento que acolhe os viajantes de todo o planeta. Nunca ninguém tinha visto duas Luas, juntas, no mesmo retrato. Lá de baixo, ao lado da mata, iluminadas pela grande Lua – o satélite natural da Terra e corpo celeste mais emblemático do céu –, as duas jovens Luas esperavam um novo dia para visitar o maior conjunto de quedas d’água.
Às 8 horas, quando os primeiros raios de sol adentravam a casinha preta sobre rodas de um micro-ônibus, Luna Preto Soncini, a Luna, de 13 anos, que tem deficiência motora, começava a sinalizar sobre a cama que era hora de levantar. O casal Fábia Soncini e César Augusto Preto, pais de Luna, abre as portas da casinha, que leva o nome de Brasil Especial. .
. Como soubessem que o sol iria entrar pelas janelas e portas, e alguém chegaria para conversar, tomar café, a família do estado de São Paulo iniciou os preparativos do desjejum e as atividades matinais. Para surpresa dos viajantes, na janela ao lado, uma outra casa ambulante saudava o novo dia com a abertura de suas janelas e portas.
Brazucas e alemães; fraternidade dos povos na Passarela do Mundo – Imagens: Brasil Especial
. Um caminhão austríaco, utilizado com oficina militar, na Alemanha na década de 1960, era a casa de Frank Herold, Marion Herold e da filha Mira Luna, de apenas 1 ano de idade. As famílias primeiramente trocam acenos e saudações internacionais. O viajante Preto, paulista, esportista, descolado, inicia a aproximação com os vizinhos.
Com muito esforço e perspicácia, descobre algo sobre eles. Eram alemães, iniciaram a viagem por Hamburgo, na Alemanha, onde despacharam o caminhão por navio e o retiraram em Montevidéu, no Uruguai. Do Uruguai, Frank Herold dirigiu até o Brasil, passando pela Argentina, e seguirá viagem pelas principais cidades de toda a América Latina pelos próximos anos.
Café e prosa de uma tarde
O Plano é terminar a excursão quando a filha Mira Luna completar 3 anos, para iniciar os estudos na cidade de Bamberg, no estado da Baviera, onde residem. “O Tempo é vivido a cada dia”, dizem os alemães e brasileiros, enquanto saboreiam um café ao sol, ao lado da mata. Talvez o cheiro da mata, misturado com a energia do estrondo das quedas d’água, tenha ajudado Luna, de 13 anos, a despertar ainda mais ativa.
Enquanto Preto faz a fisioterapia com Luna no colchão, a mãe confere as mensagens no notebook, no celular, e ajusta o ambiente da casa. Os vizinhos usam o Sol para desfrutar a calma do dia, planejar a jornada da semana, e Marion, a mãe, amamenta Mira Luna, que tranquilamente recebe o leite materno, não chora, relaxa.
Frank, sem entender português, e Preto, sem entender alemão, conversam tagarelamente sobre cada detalhe do veículo alemão, da viagem, das viagens e da vida. Foi gratificante vê-los conversando. Frank explica sobre o nome com o qual eles batizaram a excursão; na tradução: três pares de sapato e quatro rodas.
A ideia foi criada quando nasceu Mira Luna. O casal decidiu que faria em breve uma grande viagem, uma viagem para fora e para dentro deles, para entender um pouco mais sobre si mesmos e as pessoas de outros lugares do mundo.
Por vários momentos pensei que Preto tinha aprendido alemão e Frank sabia falar português. Frank, profissional de tecnologia da informação, de férias sabáticas, mostra com carinho as peças originais do caminhão, verdadeira relíquia da década de 1960. Com uma linguagem visual, vai apontando com a mão e circulando o carro, mostrando minuciosamente os tanques reservas de diesel, os recursos para desatolar o caminhão, pneus reservas, estruturas internas, placa solar, recursos de segurança, entre outros itens.
Frank conta que planejaram a reforma da casa ambulante. “Antes de começar a construir, desenhei uma planta baixa em escala real. Planejamos a nossa sala de estar e experimentamos diferentes cenários. Isso resultou em algumas mudanças para nós em relação ao plano original. Então você deve pensar em como deseja construir a parte interna do veículo. E se vai utilizar estrutura de madeira ou tubos de aço retangulares, como fizemos.”
O alemão destaca ainda: “É preciso pensar a vida em uma casa com poucos metros quadrados. Tem que ter espaço para arrumar roupas, comida, área para sapatos – mesmo que molhados –, lixo, utensílios de cozinha, louças, tecnologia, roupa de cama, espaço para livros e entretenimento, local para pendurar roupas, arrumação rápida para pequenas necessidades do dia a dia. É preciso que tudo seja adequado para uso off-road, isto é, tudo deve ser muito bem encaixado, de preferência duas vezes. Na viagem, o veículo balança muito.”
Frank e Marrion
Preto, atento à conversa, também narra a história da casa e a trajetória da família, como sempre faz quando se instala pelas cidades do Brasil, promovendo a alegria, desmitificando preconceitos e inspirando pessoas. Diferentemente dos alemães, a família Preto Soncini planeja ter uma casa confortável, cheia de crianças, uns seis filhos, seguir trabalhando e obter renda para estruturar uma vida equilibrada.
Luna nas Cataratas
Quis o destino que o rumo da história fosse diferente. A linda Luna nasceu prematura de 30 semanas, algo em torno de 7 meses e meio, por isso precisou permanecer no hospital para ganhar peso. Com 1 mês de vida, enfrentou seu maior desafio, ela teve uma hemorragia cerebral de grau 4, que causou sua deficiência atual. A família abraçou Luna, reprogramou os objetivos e plano de vida.
A família, dona de empresa de tecnologia, decidiu que era hora de despedir-se do negócio, dos bens, da rotina de trabalho, para viver a três: Luna, Fábia e Preto. Os paulistas venderam casa, apartamento, carro, e doaram a maioria dos móveis. A meta era adquirir um motorhome. Eis que no caminho aparece um veículo com excelente estado de conservação, que era uma agência móvel de um banco. Fechado negócio. Sem experiência na montagem da casa ambulante, o casal foi pesquisando e vibrando a cada nova forma que o lar ia ganhando.
A casa ficou pronta, caiu no mundo e ganhou um nome: Bambobil, uma junção de bambina (moça amorosa) com bumblebee (em inglês, transformer, transformação). As viagens com o Bambobil começaram no ano de 2020, com a criação do projeto Brasil Especial, e já passaram por centenas de cidades do Brasil.
Para Fábia, pegar a estrada foi um alívio. “Quando decidimos que iríamos doar 24 horas de nossa vida para a Luna, nossa vida ficou mais leve, alegre e colorida. Brincamos todos os dias.”
Luna e Fábia
Segundo a mãe, um dos sonhos da família seria poder viver eternamente na estrada.
“É uma família, uma casinha sobre rodas, uma vida na estrada, um Brasil para explorar, muitos esportes a se aventurar. A Luna foi o nosso motivo para cair na estrada e mostrar cada cantinho desse país para ela”, comenta.
Em um misto de emoção, fraternidade e amizade, Marion fala sobre Mira Luna, a filha do casal alemão, que ganhou o nome inspirado em uma DJ de Berlim, conhecida por Luna.
“Adoramos dançar sua música em festas e festivais de música techno. Luna soa bem como segundo nome, então decidimos por Mira Luna. Acabamos de verificar, quando entramos na América do Sul, que o nome tem significado relacionado à observação da Lua. Na nossa língua não tem significado, apenas soa bem.”
De uma forma aparentemente já distante, vizinhos relembram as rotinas. Frank trabalhava para uma grande empresa de software, na qual colaborou para introduzir programa em diversas companhias. Marion trabalhou em uma famosa casa noturna, com cerca de 60 funcionários. Preto e Fábia eram empresários, donos de empresas de tecnologia.
É hora de partir; Marion, Frank e Mira Luna seguem viagem
Inebriados pelas águas que acabavam de beber, do maior conjunto de quedas d’água do planeta, tentavam descrever com os cinco sentidos o que haviam presenciado. Em uma mistura de idiomas e sinais, tentavam mostrar os sentidos aguçados, expressão sobre visão, audição, olfato, paladar e tato. Os novos vizinhos se despediram de uma forma emocionada, como fossem velhos amigos, de 40 anos. Os alemães saíram primeiro. Preto, Fábia e Luna os saudaram com as mãos. Marion, copilota, acenou para a família paulista.
Talvez eles não se encontrem mais. Se você os encontrar pelo caminho, nas estradas do mundo ou esquinas das cidades, diga que enviei um abraço.
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