As editoras da Mandacaru Lucía Tennina, Rafaela Vasconcellos, Michelly Aragão e Bruna Stamato. – Divulgação
Olhar para uma estante de livros e ver nomes apenas de homens brancos deixou de ser algo comum, previsível, normal.
Os destaques crescentes de obras feministas nas gôndolas das livrarias reflete a luta especialmente do feminismo negro: mulheres que têm muito a dizer, que escrevem e sempre escreveram, mas são as menos publicadas.
Segundo pesquisa com 692 livros realizada por um grupo de investigação de literatura da Universidade de Brasília, apenas 2% das publicações de grandes editoras do Brasil, entre 1965 e 2014, são de autores e autoras negras. Como personagens, apenas 6%.
Veja o vídeo:
A escritora negra norte-americana bell hooks aponta que a atenção a mulheres negras pelas grandes editoras, geralmente comandadas por homens brancos, acontece por um interesse midiático específico, algo que soa mais à moda que a uma política editorial.
“É mais provável que essas escritoras negras, que há algum tempo têm escrito despercebidas, que já encontraram maneiras de pôr o pé na porta ou conseguiram abri-la mais, tenham conseguido entrar e agora encontrem editores para os seus trabalhos”, escreve bell hooks em Erguer a voz, e afirma que os editores “estão supostamente procurando por nós porque nosso trabalho é uma nova mercadoria”.
Portanto, é através da autopublicação ou de editoras especializadas, que levantam uma bandeira política a respeito da publicação de autores fora do previsível homem-cis-branco que as possibilidades reais de erguer essas vozes, antes pouco ou nada ouvidas, emergem. Trabalhos como as da editora Nandyala, Padê e Malê são exemplos disso no Brasil.
A escritora afroindígena e ativista comunitária Helena Silvestre publicou de maneira autônoma seu segundo livro Notas sobre a fome, através do selo editorial Sarau do Binho, que apoia o lançamento de obras de autores da periferia.
A temática da fome é atravessada pelo relato em primeira pessoa e a abordagem poética da autora, obra dedicada “a todos os povos arrancados da terra, que a retomam e ocupam, buscando desesperadamente voltar a ela.”
A obra de Silvestre foi lançada em espanhol recentemente pela editora independente argentina Mandacaru, comandada por quatro mulheres acadêmicas, e com foco antirracista: as brasileiras Rafaela Vasconcellos, Michelly Aragão e Bruna Stamato e a argentina Lucía Tennina.
“Fico muito feliz com a tradução de Notas sobre a fome para o espanhol, porque são narrativas de uma experiência de Brasil que não são facilmente encontradas nas bibliotecas e livrarias”, afirma a autora.
“São narrativas que, como tantas outras, são as que chegam pelas mãos das que subterraneamente têm construído esse país. Fico feliz de levar a discussão sobre a fome à maior quantidade possível de lugares e pessoas porque enquanto uma única pessoa sofrer com a fome, precisamos debater, e questionar os motivos que levam a que, em uma sociedade da abundância, ainda sofremos com isso.”
A aposta da jovem editora é traduzir ao espanhol obras de escritoras lusófonas e criar essa ponte latino-americana com obras de brasileiras.
No entanto, há também planos de traduções de escritoras de países lusófonos da África e de Portugal. Prestes a completar um ano, Mandacaru possui cinco títulos, sendo o Notas sobre el hambre o mais novo lançamento, que chega esta semana às livrarias da Argentina.
“Falta uma bibliografia mais interessante, além das clássicas, como Clarice Lispector, muito publicada por aqui”, afirma uma das editoras, Bruna Stamato, historiadora brasileira e mestranda em gênero pela Universidad Tres de Febrero (Untref), em Buenos Aires.
“Também publicamos mulheres brancas e cis, mas focamos em descentralizar, até mesmo com relação às regiões. Com a Mandacaru, a ideia é lançar autoras principalmente negras e indígenas, e estamos nessa busca”, conta. “É um exercício constante entrar em contato com outro mundo literário que não é tão óbvio, que não está dado.”
O trabalho das editoras especializadas se faz fundamental, não apenas pela publicação de autores “da margem”, mas pela perspectiva que levam como bandeira – como menciona bell hooks no trecho já citado.
Na Argentina, a dissertação de mestrado de Marielle Franco foi publicada pela editora Tinta Limón, que também faz um trabalho de tradução com perspectiva decolonial com alguns dos títulos apresentados, no Brasil, pela editora Elefante.
Nesse sentido, a tradução entra como mais uma escolha política. “Traduzir é caro, e especialmente caro para editoras pequenas como nós”, afirma Lucía Tennina, coordenadora de tradução da Mandacaru.
Ela conta que foi a partir do trabalho colaborativo de excelência do laboratório de tradutores da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila) que a editora fez a adaptação ao castelhano rio pratense do Quarto de despejos, da Carolina Maria de Jesus.
“A tradução que eles fizeram foi um processo muito interessante, com uma atenção especial à diversidade do próprio grupo de tradutores, com mulheres negras na equipe e de localidades distintas”, pontua.
“Para adaptar à Argentina, pensamos em conjunto, também, e um jogo bastante lindo pensar o texto a partir de um castelhano coloquial mas também com um vocabulário complexo, próprio da Carolina”, explica Tennina.
Para a edição de Mandacaru, a escolha por traduzir “preta” foi resgatar o termo prieta, de pouco uso no espanhol, mas que mantém a diferenciação que fazia Carolina entre os termos “preta” e “negra”.
“Traduzir também é político, e neutralizar a língua não deixa de ser um ato colonizador”, conclui.
Bruna Stamato, que mora na Argentina há dez anos, conta que além da dificuldade que qualquer pessoa não branca encontra em uma faculdade ao ser “uma das poucas”, quando não a única, é o impacto das bibliografias dos cursos.
“Temos também uma proposta de inserção acadêmica com as publicações”, diz, mencionando uma aproximação recente com a Untref, onde realizaram a apresentação do livro Doloridad, de Vilma Piedade (Dororidade, em português, publicado pela Editora Nós).
“Praticamente em todas as universidades há uma ausência da discussão racial, e isso é reflexo de como a sociedade argentina lida com essa questão”, ressalta Stamato. “Ainda há um senso comum de que não existe população afrodescendente na Argentina, ou que seriam todos migrantes. E a universidade reproduz isso.”
A Argentina tem 12 de suas universidades listadas entre as cem melhores da América Latina, segundo o ranking publicado recentemente pela consultora britânica Quacquarelli Symonds (QS), mas só passou a contabilizar sua população afrodescendente em 2010.
E tem um debate sobre o racismo que segue embrionário e um contexto histórico de apagamento dessa população. É uma herança colonial que se reflete em discursos desde o cotidiano até a presidência progressista.
O próximo lançamento da editora será da autora trans Amaira Moira, em uma aposta de seguir impulsionando leituras contra-hegemônicas e necessárias para romper as barreiras da língua e da colonização do pensamento — e dos livros que temos nas nossas estantes.
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