Autor de Escalavra, livro finalista do Prêmio Jabuti, na categoria romance literário, Marcelino Freire discute o cenário da literatura brasileira, diante do avanço tecnológico e da inteligência artificial. Para ele, a arte da palavra está na origem da nossa sociedade e resiste e se reinventa.
“Literatura é sabedoria, não é inteligência. Ela é tudo, menos artificial. É ancestral, vem da origem, vem da raiz das coisas. Eu sou muito otimista de que, cada vez mais, o olho no olho será necessário, a literatura como vibração do momento, uma vibração de um fogo que está sendo aquecido na hora em que aquela palavra está existindo, em que aquela troca está existindo”, explicou ao programa Conversa Bem Viver.
Para Freire, existem, na verdade, literaturas, no plural, e a produção brasileira vive um de seus melhores momentos, com maior presença de autores negros, mulheres e LGBT+, e ampla diversidade nas formas de escrita.
“A literatura contemporânea brasileira está muito bem, cada vez, inclusive, sendo mais divulgada lá fora. Muitos escritores estão modificando a cara, modificando a estante, da literatura contemporânea brasileira. Como eu posso dizer que determinada pessoa, por não ter determinadas escolhas, não seja literatura? Temos literaturas e isso é a coisa mais linda do mundo”, enfatiza.
O autor também conta como foi o processo de escrita do livro finalista do Prêmio Jabuti e as relações entre a narrativa e a sua própria história de vida. “Eu precisei escrever esse livro para reconhecer que o menino, o protagonista do livro, o Dagoberto, de alguma forma, era eu quem estava ali com ele, no corpo desse garoto, no silêncio desse garoto”.
Brasil de Fato – Quais são as armas da literatura para resistir ao avanço da tecnologia e à inteligência artificial?
Marcelino Freire – Literatura é sabedoria, não é inteligência. Ela é tudo, menos artificial. É ancestral, vem da origem, é original, vem da raiz das coisas. Então, quando a gente fala inteligência artificial, o nome já é muito desconexo do que a gente acredita como natureza primeira, inauguração do olhar para as coisas.
Então, eu sou muito otimista nesse sentido, de que cada vez mais o olho no olho será necessário, a literatura como vibração do momento, uma vibração de um fogo que está sendo aquecido na hora em que aquela palavra está existindo, em que aquela troca está existindo. Eu confio muito.
Tanto é que os teatros estão lotados, celebrando os atores e atrizes. Há também muitas rodas de samba, muitos saraus, muitas pessoas se encontrando para celebrar ao vivo, presencialmente, a energia que a arte nos dá, que a arte nos proporciona.
É muito importante, como ferramenta, a inteligência artificial, mas para outros desdobramentos e não para o desdobramento humano. Acho que cada vez mais a gente vai valorizar muito estar ao redor da fogueira, contando história, se conectando ao vivo, olho no olho, corpo a corpo.
Você foi indicado entre os finalistas do prêmio Jabuti, na categoria romance literário. Como você está se sentindo com esse reconhecimento?
Eu digo sempre que escrever um livro, entregar um livro, tornar público um livro, é uma entrega espiritual. A entrega foi feita. Eu escrevi o livro que eu queria escrever. Eu queria muito fazer esse livro da maneira que eu fiz. Tem uma importância dele para questões íntimas, para questões muito minhas.
Então eu coloquei esse livro, eu escrevi, eu lutei com essas palavras, eu convivi com essas palavras, eu quis que esse livro ficasse de pé, fosse levantado daquele chão, sobretudo desse chão sertanejo que eu conheço bem.
Aí vem a energia dos leitores e das leitoras, que, desde que ele foi lançado, têm conversado comigo. O leitor e a leitora têm dado devolutivas muito emocionantes, muito afetuosas, muito generosas, em torno da entrega que foi feita. Agora, se os prêmios vêm, é consequência dessa entrega. Eu não posso e não farei isso jamais, escrever um livro para ganhar prêmio, para constar da lista dos livros premiáveis ou dos livros premiados. Não. A entrega foi feita de uma forma muito sincera.
Agora, se os prêmios e o reconhecimento vêm, sobretudo com o dinheirinho, que venha, mas o mais importante é que a entrega foi feita e eu estou muito feliz com o resultado, com essa luta que já vem de tempo, para levantar esse segundo romance. Não é o meu segundo livro, mas é o meu segundo romance. Então, eu estou muito feliz de ter feito essa entrega e da devolutiva e dos retornos que eu tenho recebido.
Há reconhecimento para além de um prêmio, hoje, nas artes brasileiras?
As pessoas trabalham muito com números, com estatísticas, com devolutivas e devoluções matemáticas, de que as pessoas leem. Mas têm números e números. Eu entendo, esses números são importantes para outras estratégias de espalhar a literatura. Mas o que eu convivo dia a dia, batendo perna por esse Brasil todo e fora do país, vendo o Itamar Vieira Júnior ser festejado da maneira que é festejado, um escritor negro, baiano, nordestino, fazendo sucesso.
Uma Carla Madeira, mulher mineira, fazendo sucesso com os livros dela. Ana Maria Gonçalves, furando o bloqueio de uma academia branca de letras, chegando na academia com sua obra, seu grande romance clássico, que será clássico sempre. Tanta gente, tantos poetas, tantas poetas, tanta coisa acontecendo nesses caminhos estreitos maiores. Eu vejo uma literatura pulsante, viva, e eu estou muito animado com isso.
A literatura contemporânea brasileira está muito bem, cada vez, inclusive, sendo mais divulgada lá fora. Muitos escritores estão modificando a cara, modificando a estante, da literatura contemporânea brasileira. Há muitas mulheres escrevendo e são importantes esses movimentos todos. Leiam mulheres. Se perguntar se na nossa estante tem autorias indígenas, se na nossa estante tem autorias latinas, se tem autorias negras, eu acho isso um momento preciosíssimo.
A literatura tem respondido com muita força, sobretudo os clubes de leitura. Há muitos clubes de leitura, muita gente, entendendo as mulheres e se empenhando em acompanhar outras mulheres escrevendo. Eu acho esse momento lindo, sem contar a literatura LGBTQIAPN+, que tem vivido um momento também muito glorioso de autorias na América Latina e no Brasil.
Eu coordeno oficinas de literatura, com muitos autores chegando, muitas autoras também. Sou um agitado cultural e estou encontrando muitos agitados e agitadas culturais para levantar a pasmaceira em que isso estava. Acho que temos um momento muito valioso para todo mundo, para os leitores e leitoras, inclusive.
Escalavra fala um pouco sobre a relação entre um pai e um filho, mas tem um silêncio no meio. Como isso dialoga com a nossa sociedade?
Eu precisei escrever esse livro para reconhecer que o menino, o protagonista do livro, o Dagoberto, de alguma forma, era eu quem estava ali com ele, no corpo desse garoto, no silêncio desse garoto.
Eu tenho duas versões anteriores à versão que foi publicada. Porque as duas versões anteriores não me emocionavam e eu ficava me perguntando porque eu estava lutando com esse livro, porque eu queria tanto escrever esse livro. Por que é que eu estava contando essa história?
E foi quando eu descobri que o silêncio do pai em relação ao garoto no livro era o silêncio do meu pai e era o silêncio de muitos pais sertanejos, de muitos pais nordestinos. Aquilo que não está publicado, que está guardado, aquelas coisas que estão sofridas por dentro. Então, tem uma coisa ali de precariedade, de trabalhar esse pai e esse filho, trabalhar com coisas que ninguém quer trabalhar, cavar buraco para lugar nenhum, meter a mão em merda.
Os dois ali, naquele silêncio, naquela humilhação, naquela impossibilidade de um mundo possível e melhor. Então, eu, quando estava tocando nessa história, lembrei do silêncio do meu pai, sertanejo. Não queria deixar Sertania. Eu sou de Sertania, Pernambuco. Depois morei em Paulo Afonso, depois fui morar no Recife. Então, eu sei que aquele lugar tem uma paisagem nordestina sertaneja. Eu sei que aquele silêncio é um silêncio sertanejo do meu pai.
Quando eu vim morar em São Paulo, em 1991, o meu pai foi se despedir de mim e não conseguiu falar. Prendeu ali uma coisa, ficou presa na garganta do meu pai. E eu disse: “nossa, descobri que meu pai me amava profundamente no dia em que estou indo embora”.
Então, imagine você guardar isso? E, quando eu estava escrevendo esse livro, esse livro potencializou a emoção de escrevê-lo, quando descobri que eu estava falando desse silêncio, desse momento entre mim e o meu pai na despedida minha do Recife.
Essa terceira versão é misteriosa para mim, porque nem tudo eu consigo saber o que processei no livro. Mas sobretudo o livro me emocionou. E me emocionando tem pelo menos a oportunidade ou a possibilidade de emocionar quem lê.
Como você percebe o momento exato em que o livro precisa ser publicado?
O livro tem que emocionar, tem que ter energia. Mesmo você escrevendo um conto, um único conto que seja, aquele conto tem que ter energia. Nós estamos falando de energia. Eu não estou falando de energia espiritual. Estou falando de energia. Você está ali mobilizando palavras. Você está mobilizando silêncios, ritmos. Como esse texto está no teu corpo?
Nas duas outras versões, eu estava distante do livro. Era uma energia que estava acontecendo ali, mas não havia uma ponte entre mim e aquela energia. Eu lia e achava aquilo distante, achava que não reverberava em mim. Começou a reverberar quando fui puxando a resposta para essa pergunta. Por que eu estava querendo escrever esse livro?
Quando eu senti que era sobre mim, de alguma forma, embora eu não seja aquele garoto, havia uma energia que nos ligava. Quando isso aconteceu, eu percebi corporalmente que havia algo estremecido em mim, em palavra, em ritmo,. Começava a ler em voz alta e sentia que eu reverberava junto, que eu estava cantando junto, compactuando junto, isso me convenceu.
O que eram essas duas versões? Eram técnicas. Eu, o coordenador da oficina de literatura, escrevo já há um tempo e poderia ter entregue um livro conscientemente técnico. Mas eu não me sentia parte daquilo, não havia um sangue correndo ali naquela escrita e em mim. Acho que qualquer texto a gente entrega quando essa energia acontece. E isso acontece, a gente percebe uma vibração.
É algo que não é saber tudo do livro. As duas outras versões eu sabia tudo do livro, porque eu estava técnico. Quando eu estou técnico, mas ao mesmo tempo estou ali ferido por aquela técnica, está na hora de entregar e jogar essa energia para o leitor e para a leitora.
Digo que consegui me emocionar. Consegui sair do lugar comum, consegui sair do meu lugar comum, do meu lado mais confortável, e ir para uma possibilidade de construção de algo que é paralelo, que é misterioso ainda.
Todo escritor, toda escritora, o que entrega para a gente é o mistério do próprio livro e da própria criação. O que eu estou entregando é o mistério, não estou entregando a solução. Acho que quando a gente sente que uma energia foi ativada, essa energia é o que respinga no leitor. É o que respinga em quem recebe o livro.
Qual deve ser o papel da forma e do estilo na criação literária?
Existem literaturas. Literaturas, no plural. Existe uma polêmica recente de dizer que o Itamar Veiga Júnior não faz literatura. Qual literatura? Onde está? Que estante é essa que colocaram uma literatura inacessível? É essa literatura técnica, essa literatura para poucos?
É muito cruel dizer que tais e tais livros não podem ser escritos ou não devem ser escritos. O Itamar Vieira Júnior mobilizou muita energia no que ele faz. Você pode não gostar, você pode ter preferências, mas a literatura dele está levantada e aquelas pessoas estão existindo na literatura dele. Isso é em relação a qualquer literatura.
É evidente o embate de um escritor entre o que ele quer contar e como ele vai contar. Você pode ter preferências em relação a um estilo, em relação a uma forma, em relação a uma inovação.
Em Escalavra, eu sou uma pessoa muito ligada à poesia, muito ligada à forma, ligada à embocadura daquilo que eu quero escrever. E eu sentia que a embocadura desse livro vinha da maneira em que ele foi arranjado, artesanalmente arranjado, para poder conferir nele uma verdade.
Tem um meio, eu estabeleci uma forma, um jeito de estar na página. O meu jeito de estar na página é o meu jeito de estar no mundo. Eu procurei no livro Escalavra uma linguagem precária. Eu queria uma linguagem precária e a encontrei nos monumentos megalíticos. Eu sou muito apaixonado por civilizações antigas e por arqueologia.
Encontrei, mais uma vez, na arqueologia o meu ponto de apoio para levantar aqueles tijolos, levantar aquelas palavras, umas enganchadas nas outras. Isso é uma maneira de ver o mundo. Uma maneira de levantar um mundo próprio, uma arquitetura própria, uma casa, mesmo que seja de taipa própria. Levantar o seu mundo, a sua linguagem.
Mas isso só não daria conta, eu teria também que encontrar onde pulsa a emoção disso. Isso é uma escolha minha, solitária. Mas a entrega tem que ser solidária. E a entrega solidária significa uma comunicação onde une o que eu estou pensando como arquitetura e o que o leitor vai encontrar como possibilidade de emoção e de leitura do mundo.
Agora, como eu posso dizer que determinada pessoa, por não ter determinadas escolhas, não seja literatura? Temos literaturas e isso é a coisa mais linda do mundo. Não importa qual livro você esteja escrevendo.
Eu já dei uma entrevista há muito tempo, em que me perguntaram, por exemplo, sobre Paulo Coelho. Eu agradeci e continuo agradecendo a Paulo Coelho. Muito obrigado, Paulo Coelho, por você vender os livros que você vende, porque a venda dos seus livros possibilita eu publicar os meus livros, porque eu não sustento um editor. Os meus livros não são best-seller. Eles não são os mais vendidos.
Mas quem é que vende para que eu possa publicar? O Paulo Coelho. Aí eu vou dizer que o Paulo Coelho não é literatura? Não. Cada pessoa com o seu parágrafo, cada um com sua maneira de ver o mundo e olhar o mundo. Eu não sei fazer o que o Paulo Coelho faz. Ele não faz o que eu faço. Eu não faço o que um outro poeta faz. Quando a gente diz que isso não é literatura, dizemos: “você não pode. Você não é literatura, ponha-se no seu lugar”.
Mas o lindo é que cada um tem a sua expressão, a sua maneira de estar no mundo, a sua maneira de ver o mundo e emocionar outras pessoas, outros leitores e outras leitoras. Estamos todos dentro de um mesmo movimento.
Escalavra lembra a ideia de escalada. O ato de escrever é parecido com escalar?
Sempre. Palavra sobre palavra, palavra sobre palavra. No Escalavra, eu queria muito um título que parecesse a palavra, que a palavra tivesse lavra no nome, lavoura, lembrando e recorrendo ao clássico Lavoura Arcaica, do Raduan Nassar.
E eu ficava procurando essa palavra, já que eu já tinha decidido que seria a história do pai e do filho, do silêncio entre eles, de uma relação de fricção, uma relação de arranhar-se, um arranhando o outro, um oprimindo o outro, um silêncio também roendo o silêncio do outro.
Quem vai me dar esse título é um poeta chamado Max Martins, de Belém do Pará, que eu adoro e que tem palavras muito próprias para falar desse chão, para falar da própria metalinguagem. O livro, de alguma forma, também fala da construção do próprio livro.
Aí, fui procurar no Max Martins e encontrei um verso dele: “um escalavra o outro e se devoram e sobra um osso no solo duro”. Quando eu vi “um escalavra o outro”, eu não lembrava desse verbo. E pensei: “a escalavra, que parece um substantivo que me anima, que parece a escalavra para palavra, tem lavra e tem o verbo calar também”.
E tem um quê de escalada também. Um quê de subir, de descer, de levar tijolo para cima, tijolo para baixo. Escolhi esse título e não abri mão dele. Estava ali o que eu chamo de “título espelho”. O Escalavra tem essa ressonância com esse lugar que é migratório. Eu escrevo porque minha palavra é migratória, ela nunca está no mesmo lugar em que a deixei.
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