– Apresentação do livro “O último dia de Cabeza de Vaca”, de Fábio Campana –
Há muitas versões sobre a morte de Don Alvar Nuñez Cabeza de Vaca. Os historiadores divergem, com assombrosa convicção, sobre data, lugar e circunstância.
Nenhum deles considerou o diário de Francisco Paniágua sobre os últimos dias do mais interessante dos personagens da conquista da América.
A maioria dos historiadores não gosta de trajetórias que põem em dúvida os mitos da conquista. Também não aprecia confissões pessoais como esta que mistura personagens e fatos de épocas distintas sem obedecer ao fio ilusório da cronologia.
Alguns dizem que Cabeza de Vaca morreu no exílio, em Oram, na Argélia. Outros garantem que se tornou prior em convento em Sevilha e ali faleceu.
O inca Garcilaso de La Veja jura, baseado em papéis que a ninguém mostra, que a sua morte ocorreu em Valladolid. O historiador Ruy Dias de Gusmán garante que Don Alvar retornou do exílio, foi reabilitado, e nomeado presidente do conselho das Índias. Ao morrer, teria recebido funeral digno de pessoas gradas da Espanha.
A data é outro motivo de discórdia entre os historiadores. Há os que sustentam que ele morreu em 1557. Juntam provas. Indícios. E são contestados pelos que defendem que Don Alvar morreu em 1559.
E há os que preferem acreditar numa vida mais longa para o Adelantado. Para estes, Cabeza de Vaca viveu até 1564, quando alcançou os 72 anos.
A história oficial de Dan Alvar sempre poderá se louvar em dois livros. Naufrágios, escritos por ele, que relata os acontecimentos na América do Norte e que o tornaram um homem de fama em Espanha.
O outro, Comentários, escrito por Pedro Hernandez, ditado por Cabeza de Vaca, conta a experiência ao sul, na América meridional. Foi impresso e publicado em Sevilha, em 1555.
Mas nenhum dos dois tem a riqueza das observações pessoais, emotivas, dos escritos do presbítero Francisco Paniágua, que muito ajudaria por fim nas imprecisões e nos debates. No entanto, nenhum dos biógrafos o leva em consideração. Talvez porque os historiadores prefiram documentos oficiais.
Antes que os historiadores, enfim, descubram e interpretem cada um à sua maneira, publicamos o texto de Paniágua que não dissolve as dúvidas sobre o nascimento de Cabeza de Vaca, mas é revelador de seus tormentos nos últimos dias de existência.
O diário não tem as características dos relatos oficiais da época. Não é crônica de viagem ou de aventura. É amargurado questionamento sobre as injustiças sofridas por Don Alvar. Paniágua reencontrou-o, em 1559, num convento dos arredores de Sevilha, onde o Adelantado morreu. Cabeza de Vaca não era prior. Era apenas um homem em seu exílio, condenado à insignificância e sem o direito de voltar à América para defender-se e reconquisto o respeito que merecia.
Don Alvar Nuñez Cabeza de Vaca foi personagem de equívocos e desencontros desde o ano de 1527, quando perdeu-se no hemisfério norte e tornou-se prisioneiro dos índios durante três longos anos.
Libertou-se porque tinha conhecimento de medicina e tornou-se curandeiro dos índios. Caminhou nove mil quilômetros, de aldeia em aldeia, com a esperanças de encontrar a fonte da juventude, um dos mitos cultivado pelos europeus que vinham ao Novo Mundo.
Não encontrou fonte, não encontrou prata, não encontrou ouro. Viu muita miséria ao passar pelas aldeias dos nativos até chegar ao México e restabelecer contato como mundo hispânico, no Império de Henan Cortês, de onde retornou à Espanha. A aventura não lhe bastou. Retornou ao Novo Mundo, desta vez ao sul, para assumir como Adelantado de Espanha a Província do Prata. Mais uma vez frustrou-se. Voltou à pátria como prisioneiro. Julgado, condenado, foi esquecido em um convento, proibido de sair, de falar e de voltar à América.
Este é o atormentado relato pessoal do religioso que acompanhou Cabeza de Vaca em seus últimos dias. São revelações carregadas de culpa e do sentimento de impotência para impedir as injustiças cometidas contra o Adelantado.
Os escritos do diário do padre Francisco Paniágua não tinham ordem. Verdadeira miscelânea. Fragmentos de memórias que se confundem com as de Dan Alvar Nuñez Cabeza de Vaca, de quem confessor e a quem dedicou lealdade desde que o encontrou em Assunção, no ano de 1542, até os últimos dias do Adelantado, quando o reencontrou na Espanha.
Os escritos de Paniágua foram encontrados no final do século XIX em coleção de documentos do Convento Menor que existiu nos arredores de San Lúcar de Barrameda. Uma cópia foi remetida a Assunção para constar do arquivo público da cidade. Em 1953, foi feita pequena edição do texto de Paniágua.
A tradução para o português desta edição foi feita com dificuldade. A edição paraguaia manteve a grafa e a linguagem do texto original, em espanhol quinhentista.
Paniágua estava em Assunção quando Domingos de Irala assumiu o comando na ausência de Juan de Ayolas. Foi testemunha do que mais tarde acostumou-se chamar de reino de Mahoma, tal a promiscuidade que se instou na povoação entre espanhóis e índias. Alguns chegaram a ter mais de oitenta índias sob sua guarda, em verdadeiros haréns.
Paniágua confessa que quase enlouqueceu ao resistir à lúxuria. Fez da autoflagelação e das orações exercícios diários para resistir ao pecado. Sua vida só mudou com a chegada de Don Alvar Nuñez Cabeza de Vaca.
Cabeza de Vaca voltava à Espanha de sua frustrada aventura em busca da fonte da juventude, onde hoje é a Flórida. Na ilha Terceira, antes de chegar a Cádiza, encontrou um marinheiro da expedição de Don Pedro de Mendoza que lhe cotou sobre os acontecidos no sul e sobre a notícia de um Império riquíssimo pelas suas minas de prata.
Ao chegar à Espanha, Cabeza de Vaca pediu à rainha o posto de Adelantado no rio da Prata, assim denominado porque se acreditava que por ali seria possível chegar ao império descrito pelos índios da região. Seria atendido com uma única condição: só poderia assumir o posto se estivesse confirmada a morte de Juan de Ayolas.
Cabeza de Vaca organizou a expedição e veio ao sul. A caminho de Buenos Aires aportou na ilha de Santa Catarina. Soube, pelos índios carijós, que Buenos Aires fora destruída pelos índios querandís. Decidiu, então, seguir por terra, pelo caminho do Peabiru, como chamavam os nativos. Subiu Serra do Mar e alcançou o primeiro planalto do Paraná.
Atravessou o território, que hoje é o estado do Paraná, e deu-lhe a primeira alcunha européia ao tomar posse em nome da Coroa espanhola: Província de Vera. Alcançou a foz do rio Iguaçu. Foi o primeiro europeu a ver as cataratas e a escrever suas impressões. Transpôs o rio Paraná e avançou até encontrar Assunção, onde a sua vida e a do presbítero Francisco Paniágua se ligariam para sempre.
Paniágua foi seu confessor, seu secretário, o escrivão de suas memórias e quem mais sofreu com a condenação de Cabeza de Vaca. Escreveu carta ao rei e ao conselho das Índias em que descreve os desatinos da vida dos espanhóis no Paraguai.
Deixou em suas anotações a memória atormentada dos últimos dias de Don Alvar Nuñez Cabeza de Vaca. Experiência tão abrumadora e estranha como aquela inventada mais de um século depois por Calderón, na tragédia A vida é um sonho. Com príncipe Segismundo em seu cárcere barroco, Don Alvar descobriu no Novo Mundo as profundidades da indigência e da bestialidade.
Igual que o príncipe, Don Alvar Nuñez Cabeza de Vaca aprendeu a regressar daqueles abismos.
Fábio Campana é jornalista e escritor em Curitiba, Pr. “O último dia de Cabeza de Vaca” foi editado em 2005, pela Travessa dos Editores.
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