Queria te dar o poema inteiro. Queria te dar a história, desenrolar personagens, mas eles fogem, transformam-se em baús de quinquilharias, escondem a alma entre os limites dos reinos. Vegetais, se entrelaçam como cipós de flores miúdas na foto da grande represa. Fora de moda, envelhecem sem nunca terem sido novidade.
O rio, em sua imponência violentada, às vezes traz um ou outro sorriso infantil nas caveiras que rodam ante nossos dias. E apresenta a fragrância ainda pura dessa substância que impregna e desata uma deformidade no que escrevo para você. Mas quando a economizo em meus guardados, são potes fétidos, encaixados um a um numa prateleira da qual não sei a ordem de entrada. Sei entender que há uma ordem lógica, milimetrada, na dispensa do que apodrece, mas não sei explicá-la. Quem vem antes, com quem começa o jogo, não consigo acertar. Por isso, são intocáveis, inapropriados que são para te contar da vida. E esta vida corria, naquele tempo, calma em suas ruas vermelhas e amarelava os lençóis de linho e a mesmice das tardes dourando o som das cigarras na foz do Iguaçu.
E eu não conto histórias. Pois as que quer escutar, têm início, meio e fim. Minhas palavras, no entanto, nunca começam, elas se juntam quebradiças, colho-as paridas numa espiral do tempo e me fazem um pião a corroer lembranças. Avulsas. Em tom metálico, pinço verbos que conjugam a ação quase sempre inexpressiva e contida dessas vidas que presenciei e que teimam o presente. É o acordar entre um sonho e outro, assustando o sono; primeiro o silêncio e logo depois o balbuciar de algumas linhas. Muito pouco para dizer que registro algo mais do que fiapos de tramas. Amanheço no pranto de um e de outro conhecido, na alegria boba de um fingidor, no comum dos dias comuns. E isso é acaso contar?
Raramente paro entre uma coisa e outra. Raramente paro. A pausa me angustia, acende em mim a desesperança, e, para ela, quero sempre o preparo de um espanto. Escuto meus mortos que pedem isso, pois minha vida já é só possível nos fiapos que invento.
Invento, lembro, invento. Num rodízio de melindres e jeitos que ofereço a mim mesmo e a ti. Como se fossem cartas inebriadas e platônicas a um amor que não resistiu à primeira dentada. Assim, sem início, que como o é sempre o da paixão; carne na carne, cheiros e gostos. O caminho se faz de um desatino, uma imagem, fraquejada em qualquer rosto, em qualquer beco imaginário. Daí saem as frases, petulantes, obscenas, por não reagirem ao que existe. Cínicas, pois as quero sem vivenciar. Se fosse pra dizer o justo, nem sei inventar.
Melhor seria dizer que te escrevo conchas, partes de um mosaico eternizado pela própria construção, como o mar, como o fundo dos oceanos te escrevo. Nele, perambulam os ossos de um navio fantasma, o cheiro doce das frutas matutinas, a rotina dos músculos no pesado, a sensatez cortesã do sexo no porto, a viagem no tempo de tuas ribeiras, o atropelo de tua muamba. Sim, e a insensatez de meus recursos tão escassos para sobreviver à solidez da realidade.
E então fica assim, nos uivos de quem chora o tempo em tua borda úmida, a procura secreta por uma passagem que leve ao desalinho do silêncio.
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