Ela é a primeira a visitar-me. Seu corpo não é apenas a primeira memória. Ele é a porta que abre todas as restantes lembranças.
E foi abençoado por essa saudade que cheguei ao lugar do Vasco. Bati à porta, ele nem atendeu. Não fugiu, nem rugiu. Mandou um miúdo com mensagem da sua ausência: não estava e, além disso, estava ausente. E mais: Vasco Além-Disso Vasco mandara dizer que, agora, residia em incerteza de parte. Ainda insisti: – E Florinha também deu ausência? – Florinha? Não sabe que aconteceu com ela? – Não.
O miúdo falou que Florinha fugira de casa, numa noite dessas. Diz-se que ela se entranhara na floresta, deambulando sem destino. Ainda lhe seguiram o rasto até à curva do rio. Depois, subitamente, nenhuma pegada, nenhum vestígio, nenhuma gota. Mal soube da fuga, Vasco ordenou que todos espalhassem vigília e desgrenhassem capins e arvoredos.
Enlouquecido passou o mato a pente fino. Pobre homem: abanava a árvore para cair fruto, mas quem tombou foi serpente. A solidão se enroscou, definitiva, no seu viver. E o homem se azedou a pontos de se raivar contra tudo e todos. Quem sabe tinha sido boa fortuna eu ter falhado encontrar-me com esse Vasco? Com certeza, ele me receberia a tiro de espingarda. .
Assim, com saco vazio e alma magra eu me fiz ao mato, ensaiando um arrastoso regresso. Trazia comigo o meu nenhum dinheiro, bolso enchido de sopro. Um céu triste me enevoava. Pela primeira vez, chamava lembranças e a Florinha não comparecia.
Estranhei, com suspeição. Porque ela se tinha retirado da sua ausência? Meu sobressalto tinha razão. Porque, sem saber, um contrabandoleiro me tinha seguido desde a cidade. O malandro sabia, por certo, que eu ia colectar um montante.
Tomando-me por um zé-alguém, o bandido me emboscou. Saltou de um penhasco, sombra encostando-se-me no corpo. Foi espetando nariz no meu hálito enquanto encostava o cano da espingarda no meu pé. Olhei para baixo, em respeito do medo.
De repente, o valor das minhas partes inferiores se desenhou, superior, ante o meu juízo. Cada pé sustenta mais que uma perna, meio corpo, meia vida. Um pé suporta o passado, outro dá apoio ao futuro. Aquele pé que o matulão me ameaçava, eu sabia, aquele pé dava sustento ao meu futuro.
– Esse, não. Lhe peço, dispare no outro pé.
A mão do mautrapilho procurou encosto no meu ombro. Era gozo de tocar-me? Ou seria o gosto de me ver liquedesfazer em tremuras? Eu já fazia descontos na minha vivência, mais vazado que o saco que tremia em meu regaço. Corajoso é o que esquece de fugir? Pois, imóvel fiquei até que se escutou o formidável rugido, clamor de cavernosos dentes. Cruz em peito, credo na boca! O que seria um tal escarcéu? E eis que um leopardo se subitou entre os ramos das árvores. E soou o disparo, tangenciando o instante. Tombei no meio de gritaria. Que se passara? O bandido, tomado de susto, disparou em seu próprio corpo. Tudo se passou em fracção de um “oh” e, no rebuliço, ainda acreditei ver um dedo maiúsculo voando, avulsamente pelo ar. Mas eu já me desencadeara dali, correndo tanto que os quilómetros se juntaram às léguas. Em pulos e tropeços, a distância me foi escudando.
Mas, contudo e porém. Mordido por ter cão, mordendo por não o ter. E eu me salvava de balázio para me perder na escura selva. Salvei-me da boca, metia-me no dente? Olhei em volta e o verde me enleava, pegajoso. Dormi com o relento, lençolei-me com o infinito da estrela. Pensava que era noite de passagem. Mas rodopiei mais noites às voltas, zarantolo. Assisti às quatro estações da lua. Comi raiz, masquei folha, trinquei casca, cuspi-me a mim. Beberiquei orvalhos, na cafeteira da madrugada.
Já eu tinha perdido contas às manhãs quando ao despertar me rasgou um susto.
Focinhando em meu rosto estava o leopardo. Minha alma caiu de joelhos, me entreguei a meu próprio fim. O felino achegou–se e estacou a rasar-me o corpo. Olhei seus olhos e estremeci até às lágrimas: ali estavam, serenos e espantosos, os olhos de quem eu nunca me curara de ter amado.
– Florinha! E mesmo debaixo de tontura entreguei meu rosto, meu pescoço ao afago. Tanto que não senti nem dente, nem sangue. Os outros dizem que foi milagre o bicho não consumar em mim sua matadora vocação. Só eu guardo meus secretos motivos.
Mia Couto, O conto ‘O caçador de ausências’, foi publicado no livro “O fio das missangas”. Lisboa: Editora Caminho, 2003.
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