Dalton Trevisan quando jovem. O escritor paranaense nasceu em 14 de junho de 1925 – Foto: reprodução
Curitiba é uma cidade peculiar. Peculiar ao ponto de, aqui, viver um vampiro. Sim. O Vampiro de Curitiba, Dalton Trevisan.
E foi, provavelmente, esse “título-alcunha” que chamou a atenção da menina que fuçava a biblioteca do pai em uma tarde fria de outros junhos no Abranches — ou maios, talvez agostos, mas certamente ainda não setembros. Não há memória do cheiro de flor, nem rinite de pólens no ar neste flashback literário.
A menina que fuçava livros esbarrou em uma encadernação com capa “meio cor de rosa” onde leu: O Vampiro de Curitiba e a curiosidade deu cambalhotas dentro dela — Oba! Histórias de vampiro!
Quando o livro começa a ser devidamente devorado, na urgência de aprender coisas novas, tão inerente a essa etapa da vida, ainda mais para quem gosta de ler, abre-se uma “Caixa de Pandora” ou um portal, uma ponte, uma janela para o infinito, um leque de possibilidades e, acima de tudo, abre-se a mente. Sonha-se. Imagina-se. Abre-se. Abre.
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. Ao abrir sua “Caixa de Pandora”, a menina descobre uma dedicatória. Assinada. Manuscrita. “Para o Ronald, com um abraço do Dalton.” — Uau! Pensou a menina: Ronald é o pai dela. O “Vampiro” autografou, de próprio punho, o exemplar do pai. Quem sabe se com sangue… de meninas? Virgens? Agora era mais que curiosidade literária, era uma curiosidade meio mórbida. A mesma curiosidade com que abrimos, de mãos trêmulas, o exemplar da Tribuna com aquele crime da mala estampado na capa. A curiosidade com que paramos para ver um acidente onde as vítimas ainda não foram socorridas. Que nos leva a assistir filmes de terror. Afinal, o livro era sobre vampiros. Sobre um vampiro, especificamente, de Curitiba, e que conhecia o seu pai, já que havia escrito para ele uma dedicatória na contracapa. O coração da menina palpitava a ponto audível, como se estivesse fora do peito.
Enquanto abria, de modo quase sagrado, o livro rosa do “Vampiro” e juntava as letras para descobrir as palavras que se formavam, o pai da menina saiu de seu escritório e viu a cena: ela, sentada no chão acarpetado, segurando o livro com a dedicatória do “Vampiro” com orgulho. O pai foi ficando vermelho e, meio brabo e ríspido, para o espanto da guriazinha, disse: — Esse não, filha! Esse, ainda não!
Ela não entendeu, como também não entendia porque o pai implicava com a Rita Lee e a música do perfume que dizia “me deixa de quatro no ato” e que a garota cantava aos berros, até que foi, digamos, proibida pelo pai, uma espécie de “censor amoroso” da sua infância.
Acervo da autora: Dedicatória de Dalton Trevisan a Ronald, pai de Guta Stresser
Mas, como bem se sabe, o proibido sempre aguça a curiosidade, e, às escondidas, ela leu “antes do que deveria” O Vampiro de Curitiba. Assim como sempre associava cantar Rita Lee a estar cometendo uma pequena transgressão. Era a curiosidade pelo que “não podia” ou “não deveria” falar ou cantar ou, ainda, ler na infância, que a fazia, de certa forma, ter a sensação de estar fazendo uma revolução ao desobedecer. A guria cresceu e leu, com todo o incentivo do pai, a obra completa do “Vampiro”, o Dalton, sobrinho-neto da avó do pai. A nonna Giovanna, veja só!
A menina que fuçava livros na biblioteca dos pais resolveu, muito nova, mais do que o pai provavelmente aprovaria, ser atriz. E um dia, já atriz profissional, e quase uma adulta, toca o telefone na casa onde vivia, o fixo. Naquela época não tinha celular e essas modernidades tecnológicas. Ring, ring, atendo, não atendo. Calhou que atendi. Era a Regina Bastos. Titânia em pessoa, a minha rainha das fadas e da porra toda, chamando para “correr para o Solar do Barão que o Ademar Guerra queria me conhecer”. Sério! Muitos uaus aqui: ele queria que eu fizesse um teste para encenar “A Polaquinha”! E o resto é história. Literalmente, é o começo da minha história como atriz profissional, dando vida ao icônico personagem Trevisaniano: A Polaquinha!
Mas este texto não é sobre mim. É uma homenagem ao Dalton. O próprio “Vampiro de Curitiba”, que esteve presente a um — que me lembre, um — ensaio, no Novelas Curitibanas.
Lembro de ter ficado muito tímida diante daquele senhor de calça e jaqueta jeans, que simplesmente estava em minhas incursões pelo proibido universo do Nelsinho e da Polaquinha. A capa laranja com a moça loirinha nua de seios pequenos. Peitinhos de pitomba. Tantos outros personagens e contos devorados “antes da hora” e “como imaginar que se dobrava pra cima?” — Volta criatura, você deve estar com cara de panaca olhando pra ele, igual uma tonga!
Eu nem sei explicar. Estava diante de um cara que era todas essas coisas:
1) um gênio 2) melhor contista 3) o cara das frases curtas 4) o cara 5) vampiro 6) leitura proibida nas incursões na biblioteca dos pais 7) o autor da peça!
Ali, sentado na primeira fileira, e nós do elenco no chão do palco do Novelas. Talvez também tímido? Vai saber. Dizem que vampiros não são exatamente os mais desinibidos. São discretos. Afinal, não se sai por aí a alardear: — Ei, eu sou um vampiro! A não ser que você seja o Jorge Mautner. Ou um vampiro moderninho de seriado americano. Não o de Curitiba.
O “Vampiro de Curitiba” é discreto, como cabe aos verdadeiros imortais.
Feliz 99 séculos, Dalton!
Obrigada por ter resolvido escrever em algum momento da sua vida e não ter parado mais! Obrigada. A próxima homenagem vem, espero, em forma de filme! Vai ser lindo, vai ser rodado, produzido, dirigido e interpretado em Curitiba e por curitibanos. Mas isso, você sabe, Dalton: você nem pode saber.
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